Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 29-10-2006

Particípio passado de finar
No livro As Intermitências da Morte, de José Saramago, a certa altura, dialogando com alguém sobre a vida, a morte diz:
Particípio passado de finar

No livro As Intermitências da Morte, de José Saramago, a certa altura, dialogando com alguém sobre a vida, a morte diz: "sou muito menos complicada que ela" (p. 198). E é verdade. Morrer é o que de menos burocrático há na vida, além de ser também o que há de mais barato e mais garantido. Na semana em que comemoramos os nossos irmãos finados – defuntos, mortos, os-que-passaram-desta-para-melhor – nós estamos mesmo é às voltas com a questão da vida: passadas as eleições, acertados os nossos ponteiros políticos, que rumo tomar para que tenhamos mais vida em nosso país?

E há de ser assim. As religiões e as filosofias gastam energias demais com a morte e não chegam a lugar algum, a não ser na tão célebre quanto óbvia constatação que o livro de Gênesis faz: "tu és pó e ao pó voltarás" (3,19). A morte não pode ser para nós senão um segredo certo e imperscrutável que está sempre por perto para nos remeter a formas mais intensas de vida. A morte não é um substantivo concreto como a frieza dos cadáveres, mas abstrato como os questionamentos acerca da alma. A morte é a ameaça virtual que deve nos impelir a gastar melhor a vida real. Se, ao olharmos para morte, não pensamos seriamente na vida, corremos o risco de vermos na vida senão sinais prefigurativos da morte.

Em seu clássico A Divina Comédia, Dante Alighieri tentou fazer a teodicéia do seu tempo. E enquanto ilustrava largamente uma jornada da alma ao longo do inferno, do purgatório e do céu, ele expressou em caricaturas espiritualizadas comentários acerca de diversos temas eminentemente vivos e terrestres. Assim também, se a religião for apenas um vago espiritualismo que especula como, por que e onde se dá a vida depois da morte, e se a caridade que brota dos sentimentos religiosos não passar de preocupações com o destino da própria alma, medo do inferno, de um duro purgatório ou de uma má reencarnação, ela deixará aos poucos de ser importante à nossa vida e, quando a biotecnologia chegar aonde pretende, nos tornaremos seus adoradores.

Leonardo Boff propõe aos cristãos uma mudança de paradigmas: ao invés de nos rivalizarmos na aposta pelo que será a vida depois da morte, empenhemo-nos em conjunto pela vida antes da morte; e mais: façamos isso inspirados na esperança não apenas de uma "vida após a morte", mas numa "vida para além da morte", que seja ampliação ad aeternum de todas as possibilidades de realização humana sobre a terra.

No dia de Finados, muitas pessoas vão aos cemitérios e prestam homenagem a seus familiares e amigos falecidos. É feriado no Brasil justamente para isso. É importante entrar saudavelmente em contato com os sentimentos que envolvem a morte: saudade, dor, tristeza, angústia, medo. Sem isso, deixamos de ser verdadeiramente humanos. Dizem isso os ritos fúnebres religiosos, que sabem que Jesus chorou ao ver o sepulcro de seu amigo Lázaro, e também as teorias psicanalíticas, que sabem o quanto pode ser prejudicial à formação da personalidade a falta do luto e da consciência de perda.


    Fonte: Redação Maratimba.com
 
Por:  Juliano Ribeiro Almeida    |      Imprimir