Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 29-06-2007

A ÉTICA NO SERVIÇO PÚBLICO
Fui convidado para proferir aqui uma conferência sobre "A ética no serviço público". Irremediavelmente, tenho que partir daquele ponto que toda palestra sobre ética o faz: da etimologia
A ÉTICA NO SERVIÇO PÚBLICO


Conceito de ética

Fui convidado para proferir aqui uma conferência sobre "A ética no serviço público". Irremediavelmente, tenho que partir daquele ponto que toda palestra sobre ética o faz: da etimologia. Ética vem do grego "ethos", que, segundo Leonardo Boff, significa "aquela porção do mundo que reservamos para organizar, cuidar e fazer o nosso habitat" (BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Vozes: Petrópolis, 1999, p. 27).

Ética, portanto, é o conjunto de atitudes concretas que tornam a casa arrumada, fazendo com que seja possível morar nela. Ética está relacionada com moral porque é, fundamentalmente, um conjunto de atitudes morais. Mas ética não é um sentimento, um modo natural de ser, algo inato. Ninguém nasce ético. O ser humano, no processo mesmo de ir se tornando humano, vai descobrindo a ética, vai se tornando ético, como necessidade para a conservação da vida sobre a terra.

Versão filosófica para "pecado original"

A doutrina cristã, fundamentada sobretudo na Carta de São Paulo aos Romanos – mas também com grande contributo de pensadores do início da Igreja como Santo Agostinho – ensina que existe no ser humano uma tendência para o mal. Embora não tenha sido planejado imperfeito pelo Criador, o homem, desde os inícios, usou de seu livre arbítrio para fazer insistentes opções contrárias à vontade de Deus. É assim que se compreende o chamado "pecado original": depois da queda inicial, o ser humano se manchou na corrupção da escolha mal feita e carrega consigo, para sempre, as conseqüências daquele erro primordial. E pior: a humanidade vai transmitindo, de geração em geração, essa herança negativa. Pelo próprio fato de alguém nascer, já nasce pecador. Pelo próprio fato de alguém vir a este mundo, já participa da atmosfera de pecado, já faz parte deste mundo que foi corrompido por uma opção categórica pelo mal, pelo vício, pelo erro.

E quem constata isso não é só a religião: as ciências humanas lidam o tempo todo com a grande contradição que existe dentro de cada pessoa humana. Se a filosofia é a procura incansável daquela sabedoria que edifica a pessoa, isso significa que há uma sabedoria partida em nós. Se a psicologia surge em busca da reconciliação do homem com seu próprio ego, isso quer dizer que existe em volta dele uma série de rupturas, traumas, feridas. Enfim, o Direito existe porque a sociedade não é naturalmente moral, mas precisa sempre de leis que garantam a punição e a recuperação da pessoa que cometeu um crime.

Quem trabalha com público e lida com pessoas sabe muito bem o que significa essa tendência natural da humanidade ao declínio. Basta estarmos um pouco atentos ao fenômeno do ser humano para concluirmos que toda pessoa humana é uma fonte inesgotável tanto de bem quanto de mal. Jesus, certa vez disse: "É do coração que saem as más intenções: homicídios, adultérios, imoralidade sexual, roubos, falsos testemunhos e calúnias" (Mt 15,19). A pessoa humana é um diamante que precisa ser lapidado para mostrar a sua beleza: a princípio, toda criança é um poço de egoísmo, todo adolescente é propenso à rebeldia, todo jovem se inclina aos vícios, todo cônjuge chega a cogitar o adultério. Isso não é pessimismo antropológico; é a realidade! Quem jamais experimentou a tentação? Quem jamais esteve prestes a cometer um crime na vida? Quem é imune aos chamados "sete pecados capitais" (soberba, avareza, luxúria, ira, gula, inveja e preguiça)? Se não entrarmos em contato com as regiões obscuras que trazemos em nosso interior, não conseguiremos dar o passo seguinte, que é a construção da ética.

Na religião judaico-cristã, viver de forma ética tem um nome: santidade. Do hebraico, qadosh, que significa "o que foi separado dos outros", a palavra santo(a) expressa aquele(a) que foi retirado do meio dos corriqueiros, dos comuns, dos simples pecadores. A própria idéia de santidade, portanto, já traz em si essa consciência: como diz o ditado popular, no fundo somos todos "farinha do mesmo saco". Se quisermos viver a ética, o primeiro passo é reconhecer que, se não estivermos atentos e vigilantes, voltamos à imoralidade geral, ao lamaçal da corrupção deste mundo.

Sabemos que todos almejam à felicidade, ao bem-estar, à beleza. Essa é a única prova que temos contra o pessimismo. Ao mesmo tempo em que é inclinado ao mal, o ser humano também tende à felicidade. O mito que ilustra o pecado original é a história de Adão e Eva (Gn 3): eles não comeram o fruto proibido pelo simples prazer de desobedecer a Deus. O que eles queriam, na verdade, era o conhecimento do bem e do mal, isto é, eles almejavam a felicidade de Deus. Os fins de Adão e Eva eram nobres, os meios é que foram trágicos... Quando Maquiavel lançou a sua máxima "os fins justificam os meios", ele também certamente nos ensinava a buscar não o mal em si, mas o bem que sempre está no fundo de toda e qualquer intenção.

Penso que precisaríamos desviar a idéia de evolução da dimensão técnica para a dimensão ética. Às vezes a corrupção, por exemplo, acontece porque a pessoa, que traz em si esse desejo de evoluir enquanto sujeito, enquanto cidadão, enquanto consumidor, não mede as conseqüências de sua busca, e aceita até mesmo cometer o crime de desviar dinheiro público para dar mais conforto à família, para ter mais beleza e qualidade de vida etc. Note-se que conforto, beleza e qualidade de vida são bens, são desejos bons e defensáveis. O problema está na compreensão geral de que essa "evolução" está no objeto em si mesmo e não no conjunto de atitudes que estão ao redor do objeto. Dinheiro é algo conveniente, necessário e bom, mas, como todo bem, não é absoluto: é relativo! Absolutos não são os bens, mas os valores: verdade, honestidade, liberdade, justiça, paz etc. Nesse sentido, evoluir verdadeiramente significa tornar-se mais ético, mais transparente, mais correto nas coisas, isto é, viver em função dos valores, independente dos bens que esses valores trarão. Migrar da classe média para a classe alta não deve ser visto como uma evolução. Deixar uma vida cheia de erros para uma vida mais regrada, isso, sim, é evoluir. Só se pode dizer que a humanidade evoluiu ao longo dos séculos porque ela cresceu na vivência dos valores. Um país evolui não porque tenha instalado mais fábricas, mas porque seus índices de distribuição de renda melhoraram (isto é, ele cresceu em justiça social), seu desenvolvimento foi se tornando mais sustentável (ou seja, ele cresceu na responsabilidade ecológica), a democracia foi sendo fortalecida (o que quer dizer que cresceram os valores da igualdade e da liberdade).

Corrupção na política: regra ou exceção?

Ao falarmos do serviço público, estamos falando de política. E falar de ética na política soa hoje, a muita gente, um discurso ultrapassado, idealista, desencarnado ou pelo menos ingênuo. Está em voga a afirmação, que tem se tornado cada vez mais consensual, de que "todo político é corrupto". Essa afirmação não está correta. Podemos, sim, dizer que "todo político é corruptível", e isso simplesmente porque todo político é um ser humano, portador do "vírus" do pecado original; mas nem todo político se corrompe.

Na verdade, não há como impedir que o ser humano se corrompa. Na humanidade sempre vai haver erro, engano, mentira, vício, desonestidade, inveja, suborno, vingança, negligência, omissão e seus correlatos. O que não pode acontecer é que a corrupção seja instituída. As instituições da nossa política não podem se corromper. Os órgãos públicos, as instâncias do poder e a prestação de serviço estatal não podem ser identificados com a desonestidade. É preciso sanar todas as brechas morais do nosso sistema político, para que a corrupção não se instale ali. É como uma doença contagiosa diante de um paciente com baixa imunidade: se houver exposição ao risco, a contaminação é quase certa... É preciso desinstitucionalizar a corrupção.

Frei Beto, em entrevista ao jornal A Gazeta no último dia 24 de junho, afirma justamente isso. Ele dizia: "É importante compreender que não basta exigirmos ética dos políticos. É necessário exigir ética na política. Ou seja, a instituição política precisa ser de tal maneira ética que, ainda que uma pessoa queira corromper alguém ou ser corrompida, isso fique apenas no desejo. Não pode se tornar uma prática" (p. 22).

A corrupção da política sempre foi e sempre será uma exceção. Ela nunca será "normal", ainda que venha a ser comum. Ela nunca se tornará voz corrente, ainda que esteja na moda. Ainda que a maioria dos políticos praticasse desonestidades, a política não perderia sua dignidade, sua altíssima vocação de espaço nobre para a construção do bem de todos.

Uma ética de atitudes

Mas como não viemos aqui para falar da corrupção, mas sim da ética, vamos a ela. É preciso superar a idéia de que viver a ética seja simplesmente praticar ações politicamente corretas. Ética não se refere a ações, mas a atitudes. Não se é necessariamente ético apenas porque se deu uma colaboração a uma entidade carente ou porque se devolveu o dinheiro de alguém que o perdeu. Essas ações são moralmente louváveis, mas são insuficientes para se afirmar que se trata de ética. Viver a ética significa ter uma determinada postura diante das coisas, adotar um tal estilo de vida, fazer uma opção fundamental e viver em coerência com ela.

Ser ético não é apenas ser responsável. A palavra responsabilidade tem a mesma raiz que resposta, e significa responder bem a um compromisso ou a um impasse. Mas é preciso mais do que responsabilidade para se ser ético. Mais do que responder bem às questões que forem aparecendo, a ética procura ter iniciativas morais. Ser ético significa ser mais proposta do que resposta. A atitude ética é aquela que ousa, propõe, tem criatividade, vai atrás mesmo sem ter essa obrigação.

O que sustenta o serviço público neste país não são os protocolos bem cumpridos, os horários de serviço bem observados e as consciências tranqüilas dos que fizeram nada mais do que deviam fazer. O que sustenta o serviço público neste país é a proatividade de servidores que fazem mais do que a lei pede e menos do que a lei proíbe, a perseverança dos que se acreditam na dignidade do que fazem apesar de tudo, o voluntariado de pessoas que não pensam só no próprio bem-estar. Enfim, a ética da responsabilidade tem que se ampliar e se tornar ética do cuidado com a coisa pública.

Francesco Cultrera afirma:

O nó ético da política não é a moral privada. Uma honestidade pessoal a toda prova não confere, sozinha, a autorização para ascender na luta política... A honestidade pública [...] supõe uma base de maturidade humana e de atitudes (CULTRERA, Francesco. Ética e política. Ed. Paulinas: São Paulo, 1999, p. 37).

A ética num mundo de departamentos

Estamos vivendo uma onda de grande especialização em tudo o que se faz. Tudo é cada vez mais específico. Sabe-se cada vez mais sobre cada vez menos assuntos. A exemplo do que foi acontecendo na medicina, a ética também parece estar se afunilando para caber em departamentos cada vez especialistas em cada coisa. Há uma ética na ecologia, por exemplo, que prega que não se pode matar tartaruguinhas, dizendo que isso é uma falta grave. Mas os especialistas nesta ética não pensam ser também seu dever defender com ainda mais afinco a vida de embriões humanos.

No campo do Direito, abre-se também um fosso moral difícil de tapar. Há advogados especialistas em crimes chamados de "colarinho branco". Eles estão disponíveis ao acionamento do legítimo direito de defesa de que todo cidadão goza. O problema é que às vezes esse direito de defesa vai se fortalecendo com artifícios tais como foro privilegiado, imunidade parlamentar etc e acaba alimentando a indústria da impunidade. Em nome da ética profissional, do sigilo jurídico e do legítimo direito a se recorrer a um advogado, chegamos a atrocidades como esse dado: como gosta de dizer o nosso presidente, "nunca na história desta república...", jamais se puniu sequer um político acusado de corrupção. Em centenas de processos abertos contra membros do poder legislativo federal, nenhum dos acusados foi punido; mesmo quando o crime foi provado, a sentença jamais foi executada, por causa do absurdo: eles mesmos se dão as leis punitivas e coercitivas. Quando eu mesmo me torno a minha própria lei, então já não há leis para mim, e nada pode me colocar limites. Num sistema político desses, como é possível falar de ética no serviço público? Como exigir que o funcionalismo público honre a instituição em que trabalha, se esta instituição já não tem honra por princípio e por direito?

Há uma esquizofrenia moral no ar. A síndrome das duas personalidades invadiu o cenário político nacional. Estamos em pleno conflito entre vida privada e vida pública. De repente, a vida íntima das pessoas vem à tona; gravações telefônicas denunciam crimes dos mais diversos: do adultério ao desvio de verbas; da prostituição à ligação com o narcotráfico. Isso gera a falsa impressão de que todos estamos sendo vigiados o tempo todo, e que a solução está aí. É como a ética do elevador: o fato de estarem filmando as subidas e descidas não garante que ali não esteja acontecendo um crime; ninguém ali no vídeo parece um criminoso ou se porta como um; contudo, pode ser que esteja levando uma mala – ou ainda uma cueca – cheia de dólares sujos... Vigiar não resolve o problema da ética. Se assim fosse, bastaria inventar o grampo telefônico e tudo se resolveria. Punir só também não. O fato de a Polícia Federal estar prendendo mais gente não nos garante nada além da certeza de que os criminosos investirão mais em tecnologia e farão mais cursos de eficiência no trabalho.

Cultrera ressalta que "[...] o homem, às vezes, traz consigo mesmo uma contradição, uma espécie de desdobramento: existem pais afetuosos e ternos, que sabem amar e educar os filhos; e não são fiéis à esposa" (CULTRERA, p. 40). Nesse sentido, muitas pessoas, ou por suma ingenuidade ou por se beneficiarem mesmo, dizem: "não acredito que fulano de tal seja corrupto; ele é tão caridoso, tão humilde!". Mas a ética não é um acessório garantido nos simpáticos, nos solidários ou nos religiosos. Há antipáticos e ateus que vivem a ética. Por outro lado, há pessoas consideradas exemplares em algumas áreas e que são totalmente reprováveis em outras.

Concluindo

Se a ética é a casa do homem, a morada do ser, o nosso habitat, precisamos trabalhar não simplesmente para mostrar a nossa própria incorruptibilidade, mas para tornar a nossa função incorruptível, para que, depois de nós, nenhum dos nossos sucessores se sintam convidados à desonestidade. As funções que desempenhamos devem ser transparentes, limpas, objetivas, sem duplicidades e incoerências. É assim que essa morada vai se tornando habitável. É assim que vamos evoluindo verdadeiramente, não com a evolução darwiniana, que só nos garante a ascendência dos macacos e nada mais.

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Por:  Juliano Ribeiro Almeida    |      Imprimir