Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 14-04-2010

PL 265/07 (LEI DA MORDAÇA) E O PRINCÍPIO DA PROIBIÇíO DO RETROCESSO

PL 265/07 (LEI DA MORDAÇA) E O PRINCÍPIO DA PROIBIÇíO DO RETROCESSO

Por Carlos Eduardo Rios do Amaral

Tramita na Câmara dos Deputados, como sabido, o Projeto de Lei n. 265/07, que propõe extraordinária alteração nas Leis nº 4.717, de 29 de junho de 1965 (Lei da Ação Popular), n° 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública) e n° 8.429, de 02 junho de 1992 (Lei da Improbidade Administrativa), de modo a deixar expressa a responsabilidade de quem, respectivamente, ajuíza ação popular, civil pública e de improbidade temerárias, com má-fé, manifesta intenção de promoção pessoal ou visando perseguição política.

Eis o teor da proposta legislativa em tramitação, in litteris:

"O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º Altera as Leis no 4.717, de 29 de junho de 1965, n° 7.347, de 24 de julho de 1985 e n° 8.429, de 02 junho de 1992, de modo a deixar expressa a responsabilidade de quem ajuíza ação civil pública, popular e de improbidade temerárias, com má-fé, manifesta intenção de promoção pessoal ou visando perseguição política.

Art. 2° O artigo 13 da Lei n° 4.717, de 29 de junho de 1965 – Lei da Ação Popular – passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 13. A sentença que, apreciando o fundamento de direito do pedido, julgar a lide manifestamente temerária ou considerar que o autor ajuizou a ação com má-fé, intenção de promoção pessoal ou visando perseguição política, condenará o autor ao pagamento do décuplo das custas mais honorários advocatícios’.

Art. 3° O artigo 18 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985 – Lei da Ação Civil Pública – passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 18. Nas ações de que trata esta lei, quando a ação for temerária ou for comprovada má-fé, finalidade de promoção pessoal ou perseguição política, haverá condenação da associação autora ou membro do Ministério Público ao pagamento de custas, emolumentos, despesas processuais, honorários periciais e advocatícios’.

Art. 4° O artigo 19 da Lei n° 8.429, de 02 junho de 1992, passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 19. Constitui crime a representação por ato de improbidade ou a propositura de ação contra agente público ou terceiro beneficiário, quando o autor o sabe inocente ou pratica o ato de maneira temerária. Pena: detenção de seis a dez meses e multa. Parágrafo único. Além da sanção penal, o denunciante ou membro do Ministério Público está sujeito a indenizar o denunciado pelos danos materiais, morais ou à imagem que houver provocado’.

Art. 5°. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação".

Aponta o Art. 61 da Magna Carta vigente que a iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos nela previstos.

Por este dispositivo vislumbra-se que a iniciativa das leis, por quem quer que seja, esbarra na necessária e imprescindível concordância de seu esboço legislativo com o circuito formal e substancial previamente estabelecido pela Constituição Federal de 1988, sob pena de contaminação de seu processo legislativo desde seu nascedouro.

O Art. 59 da Carta de Outubro, arrolando as espécies normativas pátrias, sem nenhuma timidez, estabeleceu clara hierarquia entre as mesmas, o que inclusive pode ser descoberto analisando-se o quorum rígido de alteração legislativa de cada uma. Pôs-se, assim, as Emendas à Constituição em grau de superioridade em relação a todas as demais normas infraconstitucionais.

A par desta constatação, no parágrafo 4º, do Art. 60, da Lex Fundamentalis, restou proclamado que não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e, os direitos e garantias individuais.

Por óbvio e evidente, o que não pode ser objeto de Emenda Constitucional também não poderá ser objeto de qualquer outra norma de hierarquia inferior.

Noutras palavras, e no que interessa aqui, também não poderá ser objeto de deliberação pelo Congresso Nacional projeto de Lei Ordinária que almeje a abolição da forma federativa de Estado; do voto direto, secreto, universal e periódico; da separação dos Poderes; e, por fim, dos direitos e garantias individuais.

Nesse passo, observa-se que dentre os direitos e garantias individuais, fundamentais ao cidadão, dispostos de maneira esparsa na Constituição Republicana - que não se esgotam, assim, tão-somente em seu extenso Art. 5º e Incisos - encontram-se os seguintes instrumentos jurídicos coincidentemente tratados no Projeto de Lei em discussão, in verbis:

- Ação Popular: "Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência".

- Ação por Improbidade: "Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível".

- Ação Civil Pública: "São funções institucionais do Ministério Público: (...) promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos".

Ainda, tais instrumentos jurídicos – a ação popular, a ação civil pública e a ação por improbidade – são servientes aos Princípios Fundamentais eleitos pela República Federativa do Brasil, positivados nos Arts. 1º a 4º da Carta Maior de 1988. Que, por sua vez, não podem, também, serem objeto de supressão ou ignorância pelo legislador ordinário, sob pena de grave afronta ao espírito e valores supremos do constituinte originário inspiradores da Constituição vigente.

A soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a não-intervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, entre outros Princípios Fundamentais da República brasileira, explícitos e implícitos, são tutelados, sem nenhum átimo de dúvida, pelas ações constitucionais tangenciadas pelo PL 265/07.

Destarte, despertado pelo PL 265/07 valores supremos e constitucionais maiores da Nação, cabe a seguinte e necessária indagação para aferição e controle de sua legitimidade formal e material: Há na proposta legislativa, à luz dos Princípios e Garantias Fundamentais insculpidos na Constituição, um avanço ou um retrocesso legislativo?

Ou mesmo, caberia ainda uma outra pergunta para controle da legitimidade da proposta legislativa em epígrafe: Acaso não visualizado um avanço, nem tão-pouco necessariamente um retrocesso, haveria certo desvio de finalidade legislativa, de modo a inserir dentro desses diplomas jurídicos diretamente servientes aos Princípios e Garantias Fundamentais da República disposições que em nada contribuem para o fortalecimento ou efetividade dos mesmos?

Em superficial análise, verifica-se que o PL 265/07 ao estabelecer cominações por litigância de má-fé ou temerária, responsabilizando o legitimado adequado, em nada contribui para o objetivo específico de zelar pela efetiva e célere tutela dos Princípios e Garantias Fundamentais da República. O tema dos deveres das partes e de seus procuradores, tratado com afinco nos Códigos de Processo, por claramente não se confundir com a matéria de mérito (substancial) da pretensão constitucional fundamental, é matéria forasteira e diminuta aos objetivos das ações constitucionais.

Pode-se, assim, encontrar retrocesso instrumental na proposta legislativa 265/07 quando se insere em Diplomas legislativos fundamentais e ordinários da República disposições que, por sua natureza, em nada acrescentam à finalidade direta e precípua de proteção a caros postulados constitucionais sagrados. Como, também, pode-se visualizar retrocesso no trato de matéria inconveniente à independência funcional que atinge, mesmo que eventual ou hipoteticamente, o legitimado adequado dessas ações constitucionais, cominando-lhe, abstratamente, penalidades, ao invés de muni-lo de outras garantias, atribuições ou competências materiais.

Um bom exemplo de avanços em matéria de tutela dos Princípios e Garantias Fundamentais da República foi a inserção, pela Lei nº 11.448/2007, da Defensoria Pública dentre os co-legitimados à propositura da ação civil pública, a bem da erradicação da pobreza, da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais. Sem que, com isso, a legitimidade de qualquer outro protagonista fosse atenuada. Aqui, o avanço legislativo foi espetacular e digno de admiração, principalmente para a camada mais sofrida e esquecida da população brasileira.

Mas, como indagado ainda, se em nada serve o PL 265/07 no contexto da evolução da tutela das liberdades públicas e fortalecimento da democracia, mas, entretanto, estabelece suposto controle de possíveis lides temarárias ou de má-fé, responsabilizando o legitimado adequado, seria possível desvirtuar a finalidade dos Diplomas da ação popular, da ação civil pública e de improbidade administrativa, abrindo-se uma exceção, para inserir conteúdo diverso do ali diretamente tratado? Atende a finalidade destes Diplomas a inserção de um microssitema do improbus litigator em seu próprio corpo, estabelecendo inclusive sanção penal? Certamente que as matérias são diversas.

O tema de litigância de má-fé, da lide temerária e da responsabilização por dano processual já é matéria inteiramente regulada no Código de Processo Civil, com precisão cirúrgica. E é neste Codex que deve ser inteira e genericamente regulada a questão, sob pena de desvio de finalidade legislativa. Ainda, não se pode estabelecer tratamento desigual, abissal, a ponto de se estabelecer como crime o ajuizamento da ação para o pólo ativo, enquanto ao demandado aplicar-se-ia as regras do CPC de 1973, com afronto ao postulado da isonomia.

Acontece que o desvio de finalidade legislativa, em sede de Princípios e Garantias Fundamentais, deve ser entendido, sempre, como um retrocesso nas conquistas do cidadão e da República, uma vez que abre ensejo a uma série de distorções e sobressaltos ao ideal traçado pela Constituição Federal de 1988. Por esta razão, o PL 265/07 esbarra em evidente inconstitucionalidade material, quando pretende regulamentar matéria estritamente processual, e já positivada nos Códigos de Processo, dentro de corpos legislativos fundamentais, de modo desproporcional e em evidente desvio de finalidade legislativa, a fazer incidir a cláusula universal da proibição do retrocesso.

Carlos Eduardo Rios do Amaral é Defensor Público do Estado do Espírito Santo

Fonte: O Autor
 
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