Categoria Geral  Noticia Atualizada em 08-11-2011

Cinegrafista morto: até onde a reportagem deve ir?
Gelson Domingos: um herói morto em cobate motivado por quem?
Cinegrafista morto: até onde a reportagem deve ir?
Foto: noticias.r7.com

Lembro-me bem daquele rosto fino e com ar de compenetrado atrás da câmera. Gelson Domingos estava aflito naquele dia. E não era preocupação apenas em fazer a melhor imagem no estúdio. Por causa de problemas na coluna, Gelson havia recebido orientação médica para que se afastasse das ruas por alguns dias. Dentro do nosso cenário, o peso da câmera era responsabilidade do tripé e não apenas do ombro experiente do cinegrafista. Lá se vão 5 anos desde que conheci Gelson assim, no estúdio, quando o "RJ Record" ainda dava seus primeiros passos.

Gelson passou a vida inteira capturando imagens. Ironia do destino, a sua própria, gravada com a câmera que segurava quando caiu no chão, registrou seus últimos minutos de vida. A polícia julgava que a situação na comunidade já estava contida depois de um intenso confronto com traficantes. De posse dessa informação, policias autorizaram a entrada da imprensa. Meu colega entrou na favela para nunca mais sair. Mas a culpa não é da PM. Gelson não dependia de um "câmbio-positivo-operante" para buscar suas melhores imagens. O que o impulsionava era um revestimento psicológico inconsciente de que a melhor imagem vale certos sacrifícios. O profissional só não imaginou que esse custo, desta vez, seria sua própria vida.

A morte dele, com um tiro de fuzil no peito, quando acompanhava uma operação policial na comunidade de Antares, zona oeste do Rio de Janeiro, deixa mais que saudades: deixa a polêmica sobre até onde se deve ir em situações extremas de coberturas jornalísticas.

Durante o velório de Gelson ouvi idéias diversas. Desde um movimento em massa contra a TV Bandeirantes, até um manifesto para que repórteres e cinegrafistas que transitem em áreas de conflito possam usar coletes mas seguros, que resistam à tiros de fuzil, como os que só são autorizados para integrantes das forças armadas. Mas a culpa também não é da falta do "colete certo na hora certa". Fortalecer "escudos" faz somente com que bandidos também fortaleçam seus ataques. É como aquela velha e retórica discussão sobre a mudança da maioridade penal: tornar um adolescente de 16 anos responsável criminalmente por seus atos, não faria com que traficantes procurassem novos "súditos" em idades ainda mais tenras? Acredito que o mesmo vale para acreditar que direito a usar colete a prova de fuzil vai resolver alguma coisa. Daí traficante passa a atacar, não mais com fuzil, mas sim com bazuca. É o cachorro correndo atrás do próprio rabo...

A mudança não está na lei. Ela está nas nossas cabeças. Jornalistas e cinegrafistas não são pressionados por redações e chefia para tirarem suas vidas. Não há quem em "sã" consciência prefira morrer como herói da televisão do que ser um covarde vivo. Isso é lenda urbana. Na Record, por exemplo, a entrada ou não em locais de risco é facultada a equipe de externa, embora a orientação seja sempre não arriscar quando o risco for iminente. E isso não é uma forma de deixar a responsabilidade na mão de quem está lá, "in- loco", para se ver livre do problema não! É uma forma de se assumir que essa é uma avaliação única e exclusiva de quem esta vendo o conflito de perto. Conheço repórteres da casa que dizem simplesmente "não" e são respeitados.


Repórter da Bandeirantes chora ao ver companheiro morto. / Foto: "O Dia".




O que moveu o Gelson não foi apenas "paixão pelo ofício". O risco não depende dessa relação afetuosa pelo trabalho. Ele também aparece quando nós, repórteres que estamos na chamada "hora do vamos ver", nos sentirmos mais encorajados em busca de um reconhecimento profissional por bravura. Quem já fez reportagem de rua sabe que temos colegas "kamikazes" que, por conta de seu perfil destemido, "forçam" uma entrada em massa de repórteres em locais que deveriam ser evitados. Eu já vi isso acontecer. É o retrato de uma competição tão predatória, que vale o risco ao bem mais precioso que é a vida. "Se eu não entrar, o cinegrafista da outra emissora entra e grava tudo." - ouvi certa vez de um repórter cinematográfico com quem trabalhei. A culpa está mais em nossas cabeças do que em supostas determinações ou diretrizes editoriais. Redação alguma prefere ter a melhor imagem em troca da pior notícia de um integrante da equipe baleado. A concorrência nada sadia em busca do melhor furo e a competição pelo melhor ângulo, é que faz com que os fins justifiquem os meios.

O Gelson foi vítima de arma muito mais mortífera e perfurante que uma bala de fuzil: a disputa devastadora e agressiva que existe entre nós mesmos, nas ruas. Minhas conclusões terminam com um "até logo" aos demagogos de plantão que vão garantir que sem esses "heróis" jamais saberíamos o que acontece lá dentro de uma comunidade. Desculpe, mas não consigo concordar. Não quero um "Gelson-herói" morto. O que não protege e nem trás o querido e amado Gelson de volta é blindagem da demagogia.

Fonte: noticias.r7.com
 
Por:  Maratimba.com    |      Imprimir