Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 07-02-2013

CHEGA DE INSANIDADE
Fiz uma experi�ncia: perguntei a dez amigos o que achavam de uma pris�o funcionando assim. De todos, sem exce��o, ouvi que tratava-se de uma insanidade, uma ideia de realiza��o imposs�vel.
CHEGA DE INSANIDADE

Quero convid�-lo a um exerc�cio mental. Comece imaginando uma penitenci�ria que n�o tenha guardas - nem armados, nem desarmados. Pense nos pr�prios presos tomando conta das instala��es, de forma absolutamente ordeira!

Tente conceber, em seguida, que as chaves das celas fiquem permanentemente em poder dos pr�prios presos - que sejam eles a abrir e fechar as portas de forma absolutamente respons�vel. Agora respire fundo e tente visualizar a cena de detentos escoltando outros - algemados, se necess�rio - rumo ao F�rum para alguma audi�ncia.

Para os casos de indisciplina, construa mentalmente uma comiss�o de presos julgando e penalizando seus companheiros com absoluto rigor. Acrescente uma pitada de pimenta nesta ideia: que cada caso seja devidamente registrado em um imenso quadro, para que todos saibam a quantas anda o comportamento dos apenados.

Tente, em seguida, imaginar celas quase que perfumadas, absolutamente limpas, sem um risco sequer nas paredes, com toda a roupa de cama dobrada e impec�vel sobre o colch�o. E isto - fa�a um esfor�o para imaginar - gra�as a uma inspe��o semanal realizada pelos pr�prios presos. A cela vencedora ganha regalias e a menos organizada, al�m de perd�-las, hospeda durante a semana seguinte um simp�tico e simb�lico porquinho de porcelana.

Neste pres�dio - d� asas � sua imagina��o - toda a alimenta��o � preparada pelos pr�prios presos, que comem dignamente com talheres normais. Tamb�m s�o eles a lavar os pratos e manter impecavelmente limpa a cozinha. Pense em uma comida de excelente qualidade, saboreada todos os dias, salvo no jantar de domingo - faz-se jejum para que os alimentos sejam doados a alguma fam�lia necessitada. E tente conceber a cena de presos reunidos fazendo uma ora��o antes de cada refei��o.

Para n�o facilitar demais as coisas, acrescente � sua imagina��o uma disciplina r�gida, com muito mais regras que as de qualquer outro pres�dio comum - que ali a lei seja cumprida em todo o seu rigor. Que sejam obedecidos, impiedosamente, os hor�rios de trabalho e estudo.

Ali�s, falando em trabalho, que tal sonhar com presos trabalhando na confec��o de pe�as de carros, sand�lias, confec��es etc. E sonhe grande - que as pe�as de carro, por exemplo, sejam vendidas para grandes montadoras!

A meta seguinte � tentar criar a cena de presos com suas pr�prias roupas civis, sempre limpas, identificados apenas por crach�s. E que as roupas sejam lavadas por eles mesmos. A prop�sito, para manter a disciplina, some a este projeto mental que, se um preso lavar a roupa do outro, estar� cometendo falta grave, pela qual todos pagar�o.

Fiz uma experi�ncia: perguntei a dez amigos o que achavam de uma pris�o funcionando assim. De todos, sem exce��o, ouvi que tratava-se de uma insanidade, uma ideia de realiza��o imposs�vel.

Pois �. E esta pris�o existe e funciona assim - n�o l� no Jap�o, na Su�cia ou na Dinamarca, mas aqui no Brasil mesmo. Em Ita�na, Minas Gerais. H� alguns dias estive l�, em visita oficial, constatando ser realidade tudo o que acima descrevi.

Aos incr�dulos, apresento alguns n�meros deste projeto, que funciona h� 15 anos. Come�o pelos �ndices de reincid�ncia - no mundo, 70%; no Brasil, 80%; e, nesta pris�o, 8,2%. Construir uma penitenci�ria comum para 320 presos custa, em m�dia, R$ 35 milh�es - esta custa apenas R$ 2,2 milh�es para 200 deles. A despesa mensal com cada detento em uma pris�o convencional fica entre quatro e cinco sal�rios m�nimos - contra apenas um e meio nesta.

Evas�es? H� 10 anos n�o se sabe o que � isso l�. Tortura? Viol�ncia f�sica? Zero! E em 37.881 sa�das sem escolta policial, ao longo de 15 anos, apenas 8 presos n�o retornaram.

Enquanto isso ficamos aqui, com pris�es que mais se parecem universidades do crime, mergulhadas em uma rotina tenebrosa de den�ncias de viol�ncia, tortura e corrup��o. Pense no estrago que elas fazem na vida dos presos - e na dos agentes penitenci�rios. Calcule, serenamente, o n�vel de embrutecimento e dor imposto a ambos, para considerar em seguida que o resultado estar� em pouco tempo ao seu lado, nas mesmas ruas que sua fam�lia percorre.

A solu��o, que vi em Ita�na, � simples: seriedade, disciplina baseada em comportamento coletivo e muita religi�o. S� isso, e nada mais do que isso. Acrescento, inclusive, que o rigor da disciplina vai at� al�m do preceituado pela Lei das Execu��es Penais - assim como o n�vel das recompensas decorrentes do bom comportamento.

Como brasileiros, n�o costumam apreciar solu��es brasileiras, este projeto nasceu em um ber�o de dificuldades. No caso de Ita�na, o Juiz de Direito da Comarca foi obrigado a dar a pr�pria resid�ncia em garantia de um empr�stimo para a associa��o que construiu o pres�dio. Ali�s, a vit�ria foi obtida a um alto custo pessoal: este Magistrado abriu m�o de sua carreira - poderia estar no Tribunal de Justi�a j� h� v�rios anos - para cuidar pessoalmente deste projeto.

Mas valeu! Hoje j� s�o 35 unidades em Minas Gerais, uma rede prestes a ser bastante ampliada, conforme prometido pelo Poder Executivo, em parceria com o Poder Judici�rio.

Que tal meditarmos sobre isso? N�o seria a hora de pensarmos em solu��es locais para nossos problemas? At� aqui temos importado a ideia de pris�es imensas, desumanizadas, car�ssimas - nosso sonho � ver chegar ao Brasil a primeira "Supermax", s�mbolo do sistema penitenci�rio norte-americano.

Tem dado certo, esta ideia que importamos dos EUA e Europa? Nem aqui, nem l�! Quer se fale em custos ou �ndices de reincid�ncia, a ideia brasileira � claramente superior. H� que ser estimulada, refinada e reproduzida pelo Brasil afora - talvez pelo mundo, pois desconhe�o uma �nica pris�o de qualquer outro pa�s que possa apresentar n�meros t�o vistosos ap�s 15 anos de funcionamento.

A verdade � que temos que interromper o ciclo de insanidade que atormenta nossas pris�es.

A popula��o n�o merece gastar quatro sal�rios m�nimos mensais por preso quando apenas um e meio bastaria - e muito menos para receber de volta 80% de reincidentes, quando 8,2% seriam poss�veis.

Os agentes penitenci�rios n�o merecem passar suas vidas em um cen�rio permeado pela viol�ncia, sufocando suas almas e afetando seus lares - muitas vezes de forma irremedi�vel.

Ju�zes de Direito e Promotores de Justi�a n�o merecem, igualmente, a rotina triste de apurar e julgar den�ncias sem fim de tortura e corrup��o em um sistema penitenci�rio cujos contornos escandalizam qualquer pessoa de bem.

Estivemos, naquela visita, eu, o Secret�rio de Estado de Justi�a e Cidadania, representantes do Sindicato dos Agentes Penitenci�rios e colegas respons�veis pela �rea de combate � tortura e execu��es penais. Sa�mos todos desconcertados.

Nossa despedida foi um coral de m�sicas religiosas apresentado pelos presos. Ali vimos cantando - muitos com l�grimas escorrendo pela face - n�o assassinos, estupradores ou ladr�es, mas, antes de tudo, seres humanos em uma caminhada rumo � verdadeira ressocializa��o.

Quantas vidas ser�o poupadas e quanta dor evitada, se conseguirmos reduzir os n�veis de reincid�ncia de 80% para 8%! Tente calcular quantos assaltos deixar�o de ocorrer, quantos homic�dios n�o ser�o cometidos! E quantos estupros n�o ser�o praticados! Uma das pessoas salvas poder� ser voc�, ou algu�m de sua fam�lia...

Tenho, � frente do Tribunal de Justi�a, adotado a��es firmes contra a insanidade do sistema penitenci�rio. Tenho, sem temor, clamado pela necessidade de rompermos com o ciclo de den�ncias que o cerca. Afirmo, sem medo de errar, que o sistema atual complica mais do que resolve, e nele simplesmente n�o h� solu��o poss�vel.

Espero, e coloco formalmente o Tribunal de Justi�a � disposi��o para esta caminhada, que possamos em breve, de m�os dadas com o Poder Executivo, saudar a aurora da racionalidade e o sepultar da insanidade em nosso sistema penal.

Mudar um quadro desses n�o � tarefa poss�vel de ser completada em um ano. Nem em dois. Talvez leve mesmo uma gera��o. Mas h� que ser dado o primeiro passo. Vamos l�?

Pedro Valls Feu Rosa - Presidente do Tribunal de Justi�a

Fonte: O Autor
 
Por:  Pedro Valls Feu Rosa    |      Imprimir