Categoria Policia  Noticia Atualizada em 24-09-2013

Laudo aponta doença mental e compara filho de PMs a Dom Quixote
Psicopatologia fez Marcelo Pesseghini ter delírios e confundir realidade. Lesão cerebral e jogos violentos contribuíram para crimes, diz documento.
Laudo aponta doença mental e compara filho de PMs a Dom Quixote
Foto: www.correio24horas.com.br

O laudo psiquiátrico sobre o perfil de Marcelo Pesseghini aponta que complicações de uma doença mental aliadas a fatores externos levaram o adolescente de 13 anos a matar toda a família e cometer suicídio em 5 de agosto em São Paulo. De acordo com o documento, o estudante sofria de uma "encefalopatia hipóxica" (falta de oxigenação no cérebro) que o fez desenvolver um "delírio encapsulado" (tinha ideias delirantes). E que também foi influenciado por games violentos.

Assinado pelo psiquiatra forense Guido Palomba, o laudo compara essa perda da noção de realidade vivida por Pesseghini com a do personagem Dom Quixote. No livro, o personagem de Miguel de Cervantes y Saavedra começa ler romances e perde o juízo. Acredita que as histórias que leu foram reais e decide se tornar um cavaleiro andante e parte pelo mundo para viver seu próprio romance.

O laudo aponta que, durante uma complicação em um procedimento hospitalar aos 2 anos de idade, Marcelo ficou momentaneamente sem oxigênio no cérebro e sofreu uma lesão hospitalar. Após o ocorrido, Marcelo sofreu a encefalopatia e passou a ter delírios, inclusive na adolescência.

De acordo com o laudo, recentemente Marcelo confundiu ficção com realidade e quis se tornar justiceiro. Ele criou um grupo imaginário de assassinos de aluguel e passou a usar um capuz, tudo isso inspirado no personagem de um videogame violento. Para concretizar seu sonho, no entanto, era preciso eliminar alguns "obstáculos": seus familiares superprotetores, de acordo com o laudo.

Depois disso, como seus amigos de escola não acreditaram que Marcelo assassinou a família e não quiseram fugir com ele, o psiquiatra avalia que ele se matou, "não por arrependimento, mas por fracasso".

O G1 teve acesso ao perfil psicológico do adolescente feito a pedido da Polícia Civil. O documento, concluído na quarta-feira (18), tem o objetivo de saber o que levou Marcelo a usar a pistola .40 da mãe para executar os pais, que eram policiais militares, a avó materna e a tia-avó,e se matar depois.

O laudo concluiu que "a motivação do crime foi psicopatológica". O relatório já está com o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) para ser anexado ao inquérito, que irá concluir que o adolescente matou a família e se suicidiou. O prazo para a conclusão do inquérito já expirou e foi prorrogado até 5 de outubro - e poderá ser prorrogado novamente por mais 30 dias.

As 35 páginas do chamado "exame de insanidade mental póstumo retrospectivo" foram feitas a partir de análises baseadas em depoimentos e entrevistas de testemunhas que conviveram com Marcelo - médicos que cuidavam dele, colegas de classe, professores, outros parentes e exames periciais sobre as mortes.

O documento sustenta a tese da investigação: Marcelo matou o pai, o sargento das Rondas Tobias de Aguiar (Rota), Luís Marcelo Pesseghini, de 40 anos; a mãe, a cabo Andréia Bovo Pesseghini, de 36; a avó-materna Benedita de Oliveira Bovo, 65; e a tia-avó Bernadete Oliveira da Silva, 55. Depois, o adolescente dirigiu o carro da mãe até uma rua próxima ao colégio onde estudava, dormiu dentro do veículo, e foi para a aula. Lá, contou para os amigos que havia matado a família, mas ninguém acreditou. Em seguida, voltou para a residência e se matou. Todos foram mortos com tiros na cabeça.

Veja abaixo trechos e detalhes da "perícia psiquiátrica":

Encefalopatia hipóxica
De acordo com o laudo, Marcelo, que havia nascido com fibrose cística (doença genética que afeta o funcionamento de secreções do corpo, levando a problemas nos pulmões e no sistema digestivo; ela não tem cura e pode levar à morte precoce), teve pneumotórax (ar na cavidade pleural) perto dos 2 anos de idade durante um procedimento hospitalar. Em decorrência disso, teve encefalopatia hipóxica, que o deixou sem oxigênio no cérebro, "lesando os neurônios".

"Cérebro lesado em tenra idade é sinônimo de psiquismo com transtorno. As lesões cerebrais em tenra idade, por hipóxia, causam a chamada encefalopatia", relata o laudo.

"Marcelo era encefalopata", informa o laudo. Encefalopatas costumam apresentar frieza afetiva, insensibilidade moral, indiferença, ausência de sentimentos (piedade, compaixão, remorso), premeditação doentia, conservam outras esferas sociais, obsessão etc.

"Delírio encapsulado"
Ainda segundo o documento, essa lesão cerebral na infância, a encefalopatia hipóxica, que privou o cérebro de Marcelo de oxigenação, desencadeou tempos depois ideias delirantes "nas quais a imaginação e a realidade se misturam morbidamente", mesmo na adolescência. O nome disso, segundo o laudo, é "delírio encapsulado". A inteligência dele, no entanto, não foi afetada, tanto é que era considerado um bom aluno.

Games
O laudo aponta que, neste ano, esse quadro de delírios se agravou quando Marcelo quis se tornar um justiceiro, um matador de aluguel de corruptos, inspirado no game "Assassin s Creed". Um mês antes dos crimes, o estudante passou a usar a imagem do assassino do jogo no seu perfil do Facebook, e começou a usar um capuz como o personagem Desmond Miles - um barman que volta no tempo na pele de seus ancestrais. Com isso, encarna o matador Altair e se envolve na guerra entre assassinos e templários ao longo de diversos eventos históricos.

"Aí vieram os games, em uma época em que já tinha familiaridade com as armas de verdade. Nasceu o desejo de tornar-se um herói, mais importante que seus próprios pais", informa o laudo. "Assim, despontou a sua realidade, não mais fictícia como nos videojogos, cujos atores sempre retornam à vida, mas um mundo real que lhe satisfazia o sentimento de ser um justiceiro de verdade", aponta o laudo.
Os Mercenários
O laudo indica que Marcelo também começou a convidar amigos para fazer parte de um grupo criado por ele: Os Mercenários. "Seus membros seriam justiceiros, matadores de corruptos", informa o laudo. "Nesse contexto lhe era familiar o conceito de justiceiro, pois seus pais eram policiais, que falavam em prisão, de cujo tipo de ação Marcelo se vangloriava, tanto é que contava aos amigos da escola".

Os pais tinham ensinado Marcelo a atirar com uma arma de verdade e dirigir carros. Há relatos de testemunhas de que ele atirava bem. Chegou a ter espingarda de chumbinho, mas ela foi retirada pela mãe porque atirava em animais e não num alvo de isopor. Antes do crime, o garoto também relatou a amigos que ficou triste por não ter conseguido matar a avó com uma flechada.

"A profissão dos pais o marcou e fazia parte de seu imaginário. Além disso, a morte a vida, já por sua doença degenerativa, já por ser inerente à ação policial, não lhe eram distantes. Marcelo convivia nesse ambiente, nessa atmosfera", diz o laudo.

Família
Segundo o laudo, para se tornar um herói, Marcelo precisava superar um "obstáculo": seus pais superprotetores não o deixariam realizar seu sonho. "Contudo, era tímido e infantil, com a saúde fragilizada, vivia sob a superproteção dos pais. Talvez para compensar a grave doença de que padecia, seus pais exageraram certos aspectos, tratando-o como adulto, ensinando-o a atirar e a guiar automóvel", diz o laudo.

"Então, matou-os e assassinou os outros dois familiares na sequência, que também exerciam controle sobre ele".

Segundo o laudo, a doença de Marcelo não foi percebida por adultos porque ele não contava suas "ideias mórbidas" a eles, mas sim aos colegas, de sua idade, que não o levavam "à sério". "Esse delírio circunscrito a esse tema, encapsulado, como se fosse um câncer que pega parte do órgão, não o todo", diz o laudo.

Dom Quixote
O laudo psiquiátrico compara Marcelo ao personagem Dom Quixote de La Mancha, do escritor espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra. O documento aborda que o adolescente e o herói da obra literária viviam num "mundo imaginado".

No livro, Dom Quixote é um velho que começa ler romances e perde o juízo. Acredita que as histórias que leu foram reais e decide se tornar um cavaleiro andante e parte pelo mundo para viver seu próprio romance.

"Ao matar os familiares viu-se livre para o mundo imaginado, tornou-se de fato um justiceiro e forniu a mochila com perfume, uma calça, uma faca, um pequeno revólver e alguns rolos de papel higiênico – isso porque sabia que sem medicação (sua mochila não tinha remédios) sofreria diarréias e secreções, dadas as graves lesões pancreática e pulmonar – e saiu para dar andamento ao seu ideal quixotesco, na acepção exata do termo", diz o laudo.

"Recordando, Dom Quixote perdeu a razão depois de ler muitos livros de cavalaria (Marcelo depois de muitos videojogos) e partiu para se tornar um cavaleiro errante (Marcelo, justiceiro errante). O automóvel de Marcelo no lugar do cavalo Rocinante; a faca e o revólver em vez da lança e do escudo; Sancho Pança (o escudeiro) seria os amigos da escola, convidados no dia seguinte; a saída de Dom Quixote de um lugar de La Mancha, tal qual Marcelo de casa. E em ambos, a empreitada que daria realidade a um ideal justiceiro e andante, com a diferença de que Dom Quixote tinha por amada Dulcineia de El Tobos e Marcelo nunca namorara", diz o trecho do laudo.

Em outro trecho, ainda sobre a comparação entre Marcelo e Dom Quixote, o laudo informa outra coisa em comum. "E ainda mais, o fim de ambos é igual em um ponto: ao retornarem ao lugar de origem, sentiram-se fracassados; porém, o cavaleiro andante morreu de tristeza e o justiceiro andante se suicidou, como se verá na sequência".

Suicídio
De acordo com o laudo, Marcelo não sentiu nenhum sentimento de culpa ao matar os pais e ir para a escola logo em seguida dirigindo o carro da mãe. "Livre, completamente livre pela primeira vez na vida, tornou-se, para si mesmo, alguém poderoso como imaginara. Saiu sozinho de carro à noite! Estacionou, dormiu e foi ao colégio completamente indiferente às mortes da véspera. Aquele seria o seu último dia de aula. Faltava convidar os amigos do Clube dos Mercenários para, juntos, seguirem em frente".

De acordo com a análise psiquiátrica, Marcelo se sentiu impotente diante do fato de seus amigos de escola, que formavam os Mercenários, não acreditarem que ele matou a família.

"Terminada a aula, decepcionado, sem coragem para seguir sozinho rumo ao grande ideal, pegou carona com o pai de um amigo e, de volta à casa, sem os seguidores e sem o carro (ficou parado na rua perto da escola), toda a sua fantástica realidade (ideias delirantes) ruiu completamente".

De volta para casa, segundo o laudo, Marcelo então começou a se sentir um fracassado por não ter conseguido levar adiante seu plano de se tornar um justiceiro e sair com o Os Mercenários pelo mundo.

"Por cima do monte de entulho sobrevém a cena de imobilidade e morte dos pais. Então, não por arrependimento, mas por fracasso, com a mão esquerda (era canhoto) deu um tiro no próprio ouvido, com a mesma simplicidade que dava tiros nos games, nos quais as pessoas "mortas" sempre apareciam de novo", aponta o laudo.

O laudo ainda indica que a doença mental de Marcelo causou "um evidente estancamento na fase infantil, pois seus ideais delirantes eram simples, pueris, pouco elaborados."

"É o que ocorre, guardadas as proporções, com o psiquismo de todas as crianças de pouca idade, em que fantasia e realidade ainda permanecem amalgamadas: quando vestem a máscara de leão, não se acham seres mascarados, mas o próprio leão. Em Marcelo, a máscara era a de justiceiro errante", finaliza o laudo.

Fonte: g1.globo.com
 
Por:  Maratimba.com    |      Imprimir