Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 11-08-2014

Alguém falou em epidemia?
"Toda a gente tem o seu lado obscuro que - desde que tudo corra bem - é preferível não conhecer", C. G. Jung.
Alguém falou em epidemia?
Foto: www.maratimba.com

Que o Estado do Espírito Santo vive um "surto epidêmico" de crack, como em todo o Brasil, disso até quem não quer ver ao menos sabe. Só que o erro das análises nas pesquisas costumeiras, em relação à dependência química, está, justamente, em três fatores: na nomenclatura, na amostra, interpretação e divulgação.

O crack tem sim um poder devastador devido seu alto potencial de dependência, mas enganam-se os que pensam que é apenas uma "epidemia", ou ainda, que se trata da droga mais difícil de ser tratada pelos usuários. A diferença básica é que epidemia refere-se a elevação brusca, temporária e significantemente acima do esperado da incidência de uma determinada doença, já o surto é uma ocorrência epidêmica na qual os casos estão relacionados entre si . O fato é que o país tem poucas respostas. Embora seja reconhecida como droga violenta e destrutiva, o vício não é um beco sem saída. Vários casos evidenciam que é possível recuperar-se. Com surto ou não. Mas não há passe de mágica.

Há anos, o Sistema Único de Saúde desenvolve tratamentos baseados em atenção multidisciplinar por meio dos Centros de Atendimento Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps-AD), com apoio de hospitais para internação em casos de crise, e estruturas da assistência social. O problema é o déficit crônico de recursos no SUS, além do fato de que os princípios que devem guiar esse atendimento nem sempre são seguidos.

Conforme a literatura e estudos sobre dependência química, este contexto caberia ao álcool. Muitos se esquecem que o alcoolismo ainda é o maior problema de saúde em se tratando de drogas no mundo. Embora o consumo moderado possa ter efeitos positivos, seu abuso é muito nocivo, já que eleva a pressão sanguínea, aumenta o nível de gorduras nocivas no sangue e danifica o tecido cerebral.

A Pesquisa Global de Drogas (PGD) de 2014 indica que o álcool foi a droga mais usada em todo o globo, à frente do tabaco e da cannabis. O álcool também foi a droga mais responsável pelo envio de pessoas a prontos-socorros, e o vício que mais preocupou amigos e parentes das vítimas. A PGD é a maior pesquisa mundial sobre drogas, perguntando aos usuários sobre seu uso de substâncias viciantes.

Uma constante interessante do estudo foram as informações incorretas sobre o álcool entre aqueles que mais bebem. A pesquisa mostrou que, de todos aqueles podem ser classificados como altamente dependentes de álcool, segundo os padrões da Organização Mundial de Saúde, menos de 60% reconhecem que seu comportamento os coloca sob alto risco de problemas.

Se o crack tem feito cada dia mais reféns, os dependentes de álcool vivem numa espécie de Síndrome de Estocolmo (nome dado a um estado psicológico particular em que uma pessoa, submetida a um tempo prolongado de intimidação, passa a ter simpatia e até mesmo sentimento de amor ou amizade perante o seu agressor).

O que insisto em dizer é que ao pensarmos em políticas para redução de danos aos usuários do crack esquecemos de trabalhar outras substâncias psicoativas. Elas são tão ou mais perigosas que os cachimbos e estão enraizadas fortemente em nossa cultura.

Nenhuma droga, qualquer que seja, é mais branda ou menos perigosa para o dependente químico. Mas, segundo levantamento realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), demandado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), existem cerca de 370 mil usuários regulares de crack e similares no Brasil, sendo que aproximadamente 25 mil destes se encontram em território capixaba.

Eu pergunto: há condições reais para o debate? Uma vez que os mesmos intérpretes de pesquisas sobre drogas, no Brasil ou no Estado, apenas retiram, para representar os gráficos, uma parcela pobre, sem escolaridade, infratora e moradora de rua. o universo estatístico é infinitamente maior do que isto. E é muito mais difícil tratar uma pessoa que corre o risco, o tempo todo, e com menos de um real, sofrer uma recaída.

Segundo o antropólogo Maurício Fiore, integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), formado por pesquisadores da área de ciências humanas, o crack não é a substância psicoativa que mais deveria ser tema de debate no Brasil, e sim o álcool. Mas, como está muito relacionado a um contexto de pobreza extrema, marginalização e ocupação de espaço público, a própria existência do seu consumidor é menos suportável.

É certo que têm aparecido dados sobre seu uso em lugares onde a opinião pública nem imagina, mas, por enquanto, é preciso precaução. O consumo de crack se disseminou pelo país e, ao que parece, teve um aumento razoável nos últimos anos. Mas não se trata de epidemia, e sim do fato de seu consumidor, por uma série de fatores, incomodar mais os olhos.

Infelizmente, para quem é doente (sofre a síndrome da dependência), uma dose de pinga é tão letal ou prejudicial quanto a fumaça de uma "pedra". Talvez pior. Depende do que se entende por "epidemia". O que se alastra por aí, na verdade, é a falta do que fazer à respeito do assunto. Agora sim, temos uma epidemia perigosíssima: a da ignorância e da indiferença. Afinal, todo mundo bebe!


Fonte: Redação Maratimba.com
 
Por:  Roney Moraes    |      Imprimir