Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 29-09-2014

Freud: um "conservador rebelde"
Na �ntegra, entrevista, publicada dia 22 de outubro de 2014, no jornal O Globo, com a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco. Ela � a principal convidada da �IX Jornada Bianual do Contempor�neo�, promovida pelo Instituto de Psican�lise e Transdiscipli
Freud: um

Autora, que faz palestras no Brasil em outubro, critica �antifreudianismo� e desmonta lendas sobre criador da psican�lise

A vida e a obra de Sigmund Freud (1856-1939), o criador da psican�lise, foram objetos de uma enormidade de estudos. Mais uma biografia, hoje, do c�lebre autor de "Interpreta��o dos sonhos" e "Totem e tabu"? Para a historiadora da psican�lise Elisabeth Roudinesco, a escrita de seu "Sigmund Freud � dans son temps et dans le n�tre" (Sigmund Freud � em seu tempo e no nosso) foi uma "imposi��o". Com acesso aos novos arquivos abertos pela Biblioteca do Congresso de Washington, nos Estados Unidos, a autora francesa mergulhou na vida e obra do biografado com a inten��o de mostrar que Freud � um produto de seu tempo e, ao mesmo tempo, revelar verdades sobre as "lendas negras e douradas" edificadas sobre o personagem. O livro foi lan�ado este m�s na Fran�a, pela editora Seuil, e tem publica��o prevista no Brasil para 2015, pela Zahar.

Cr�tica severa de uma psican�lise a-hist�rica, Roudinesco condena a percep��o da obra de Freud isolada do contexto de sua �poca, estudada como um corpus cl�nico � parte do mundo em que foi elaborada. Somado a isso os repetidos ataques protagonizados nos �ltimos 30 anos pelos "antifreudianos radicais", hoje n�o se sabe mais quem � Freud, sustenta a autora em entrevista ao GLOBO em sua casa, em Paris.

Desde a primeira biografia de Freud, de autoria de Fritz Wittels, em 1924, passando pelos tr�s volumes de "Vida e obra de Sigmund Freud", de Ernest Jones, publicados entre 1953 e 1957 (lan�ados no Brasil pela Zahar), uma mir�ade de teses e ensaios foi produzida nos mais variados idiomas, entre os quais o t�tulo de refer�ncia "Freud: uma vida para o nosso tempo", de Peter Gay, de 1988 (Companhia das Letras). O minucioso trabalho de 592 p�ginas de Roudinesco � reivindicado como a primeira biografia francesa do personagem, com uma nova abordagem e distanciamento de um Freud definido como um "conservador rebelde" e criador de uma "revolu��o simb�lica" em um movimento que se perpetua.


Por que Freud e este livro hoje?

A necessidade se fazia sentir ao longo de um certo tempo de renovar a abordagem de Freud. Sou o primeiro autor franc�s a faz�-lo, e o �ltimo de um longa s�rie. E o primeiro a ir aos arquivos e utiliz�-los de uma outra forma. � verdade tamb�m que o fim de um ciclo de ondas sucessivas de �dio a Freud, de lendas negativas, de livros negros, j� faz 25 anos. Se foi muito longe no antifreudianismo, e se chegou a um ponto em que a opini�o p�blica j� estava farta de que se tratasse Freud de nazista, de incestuoso, de canalha. Era preciso restabelecer um pouco de verdade. Eu me dediquei a isto. Os psicanalistas nadam no anacronismo, na interpreta��o abusiva, porque para eles o contexto hist�rico n�o existe. Quis mostrar bem que Freud nasceu num mundo no qual n�o havia eletricidade, em que a promiscuidade de membros de uma mesma n�o era a mesma de hoje. Quando ele conta sua vida cotidiana, seja na "Interpreta��o dos sonhos" ou em outros escritos, � um dia a dia diferente de hoje. Freud foi criado numa fam�lia grande, com muitos empregados, sem �gua corrente. Ele vive nesta promiscuidade em que pode realmente elaborar a teoria dos substitutos. Quando ele v� suas cinco irm�s, v� sua m�e ou seu pai. H� modelos familiares que est�o acabando no momento em que teoriza isto. Tive sempre a preocupa��o de o imergi-lo em seu contexto hist�rico, e de mostrar que ele e sua obra s�o um produto de seu tempo.

Na Fran�a, o pa�s mais freudiano do mundo, segundo a senhora, h� uma rejei��o anal�tica da complexidade da hist�ria de Freud. Por qu�?

Mais se � freudiano, menos se � hist�rico. Mas isto est� acabando. A Fran�a foi o pa�s da renova��o da doutrina e n�o o da heran�a hist�rica. Gera��es de psicanalistas se interessaram nos textos freudianos de forma estrutural: o corpus sem sua hist�ria. N�o � um acaso se n�o houve biografia de Freud na Fran�a. Jones, qual seja a cr�tica que lhe possa ser feita, tem a preocupa��o da hist�ria. O mundo angl�fono foi muito mais atento do que o franc�fono � quest�o de imergir Freud na hist�ria, mesmo se ainda restam como interpreta��es psicanal�ticas. A psican�lise sendo cada vez menos forte na renova��o te�rica, a preocupa��o foi de historizar. E nos Estados Unidos, as querelas entre historiadores s�o muito mais importantes do que as disputas entre psicanalistas. N�o � o caso na Fran�a. E tamb�m n�o � o caso no Brasil e na Argentina.

O argentino Emilio Rodrigu� (1923-2008), primeiro bi�grafo latino-americano de Freud, teve, na sua opini�o, a "aud�cia de inventar um personagem mais pr�ximo de um personagem de Gabriel Garc�a M�rquez do que de um s�bio originado da Velha Europa". A senhora diz que cada pa�s criou seu pr�prio Freud. Quem � o Freud brasileiro?

O Brasil tem esta vantagem de ser aberto a tudo. Os brasileiros s�o muito abertos � hist�ria da psican�lise e a todas as doutrinas, h� um sincretismo. � o que foi chamado de antropofagia, este movimento que digere o que vem da Europa fazendo algo novo. Da� esta vivacidade. Embora a Fran�a seja mais forte no plano doutrinal, hoje provavelmente o pa�s mais freudiano do mundo seja o Brasil. Porque no Brasil o ensino da psican�lise se mant�m nas universidades de Psicologia, mais do que na Argentina. Mesmo que a implanta��o da psican�lise tenha sido feita pelos argentinos, que tiveram o golpe de g�nio de implantar o kleinismo, o freudismo e o lacanismo. Mas a tradi��o universit�ria brasileira � muito forte. E o fato de que seja dividida em cidades � muito importante. N�o � a mesma coisa no Rio, em Porto Alegre� E eles digeriram tudo que veio da Europa de forma antropof�gica. Temos uma abertura maior no Brasil a tudo. O defeito, evidentemente, � que n�o h� escola hist�rica, mas h� uma tradi��o. Houve Fernand Braudel, Claude L�vi-Strauss, h� uma abertura. Os brasileiros s�o ecl�ticos, e abertos a novas abordagens, enquanto na Fran�a os psicanalistas t�m 25 anos de atraso em rela��o a sua hist�ria, infelizmente. E o dogmatismo lacaniano e psican�litico em geral teve um papel nisso. Mas vamos chegar l�. J� o Freud brasileiro � ecl�tico, � uma mistura de kleinismo, de lacanismo, de inven��o brasileira. E neste ponto, Emilio Rodrigu� colocou seu tempero. Ele faz varia��es em seu livro, � um romance latino-americano, se autoriza interpreta��es extravagantes, ,mas gosto disso, porque ao mesmo tempo h� a seriedade do aparelho cr�tico.

A senhora muitas vezes respondeu a consecutivas iniciativas dos chamados "antifreudianos radicais", como a tentativa de interdi��o de uma exposi��o sobre Freud em 1996, processos na justi�a por difama��o ou obras como "Mentiras freudianas", de Jacques B�nesteau; "O livro negro da psican�lise � Viver, pensar e melhorar sem Freud", organizado por Catheryne Meyer, ou "O crep�sculo de um �dolo, a f�bula freudiana", de Michel Onfray, com quem teve uma acirrada pol�mica e que n�o tardou em atacar este seu �ltimo livro sobre Freud. O "antifreudianismo" ainda � forte?

Isto nunca acaba. Mas depois ter sido um movimento majorit�rio, se torna agora minorit�rio. Assim como os psicanalistas tiveram sua hora de gl�ria majorit�ria, hoje s�o minorit�rios. Mas eles n�o v�o desaparecer. Michel Onfray respondeu que n�o precisava ler este livro para saber o que havia nele. Quando se diz isso, � o fim de qualquer debate. H� anos ele recusa qualquer debate comigo, e n�s nos conhecemos muito bem. Ele delirou, disse que eu o tratei de ped�filo. De qualquer forma, n�o � apenas em rela��o a Freud que ele diz qualquer coisa. Fez o mesmo sobre a B�blia, Albert Camus, Sartre, Sade, e vai continuar. Mas num momento a verdade triunfa. Da mesma forma que caiu a Nova Filosofia, todas estas besteiras que h� 30 anos nos envenenam. Foi uma corrente n�o universit�ria muito sedutora em seu in�cio, jovem, com personalidades brilhantes. Mas que tinham como maior defeito contar qualquer coisa, como dizer que o goulag j� existia em Marx e Engels. Isto � uma contraverdade hist�rica. E de um certo modo a Fran�a est� pagando hoje por isto. Hoje, estamos na vingan�a dos historiadores e dos fil�sofos universit�rios contra os fil�sofos midi�ticos n�o universit�rios. Estamos no fim da Nova Filosofia, do antifreudianismo radical. Vamos passar � heran�a real.

A senhora define Freud como um "conservador rebelde". Por qu�?

Sem d�vida � um conservador rebelde. Ele entrou em rebeli�o contra os modos de pensar majorit�rios de sua �poca. Ele � um liberal conservador, que induziu uma revolu��o do �ntimo. � contempor�neo do socialismo, do comunismo, do feminismo, de todos os movimentos de emancipa��o. Mas sua caracter�stica � que retorne sempre ao Antigo, algo muito t�pico tamb�m de Viena e da cultura alem�. Para fazer uma revolu��o do �ntimo, vai buscar modelos m�ticos na trag�dia grega e n�o na modernidade liter�ria, a qual, ali�s, ele n�o entende muito bem. Ele tem este aspecto politicamente conservador, vota liberal, trabalha com os sociais-democratas em Viena, n�o confunde jamais o comunismo e o nazismo, mas n�o acredita que uma revolu��o social do tipo marxista vai dar certo. Ele � contempor�neo da Revolu��o Russa. N�o � a favor das convuls�es republicanas francesas. Mas seu movimento psicanal�tico � aberto, com disc�pulos de todas as tend�ncias, progressistas, conservadores. Ele era pela emancipa��o das mulheres, e contra a supress�o das institui��es. H� uma imagem muito justa de Freud: era favor�vel � morte do pai, ao regic�dio, mas a favor de que se recolocasse um rei no trono. Isto � explicado em "Totem e Tabu". Freud � regicida na condi��o de que reinstaure a monarquia depois de ter sido abolida. N�o � republicano no sentido franc�s. Ele gosta muito de Paris, mas n�o � a favor de revolu��es do tipo franc�s. O modelo para ele � Londres, o modelo econ�mico liberal ingl�s, e a cultura do Sul, a It�lia e a Antiguidade romana.; e mais longe, a grega, e mais longe ainda, o Egito. Freud � um homem da bacia mediterr�nica em seus sonhos, algo muito austr�aco, entre o Norte e o Sul, e muito ligado ao modelo de monarquia constitucional. E ele � judeu, o que tem um papel consider�vel. N�o � a favor do sionismo, � cria��o de um Estado judeu, prefere a di�spora, mas herdou algo desta rebeli�o. Para �poca de Freud, o inimigo � a religi�o. Ele � pela ci�ncia. O que faz com que por vezes, em seu debate com o pastor Oskar Pfister (1873-1956), possa se enganar, confunde religi�o e f�. Mas para esta gera��o de homens s�bios, originados do materialismo, o inimigo � o religioso. Ele tem isto em comum com Marx. Por isso � um conservador bastante singular. Ele � pela liberdade sexual, contra a pena de morte.

Um dos erros de Freud, segundo a senhora, � o de acreditar na constru��o de uma ci�ncia.

N�o � uma ci�ncia, no sentido das ci�ncias da Natureza. Ele sabia disto, por isso que abandonou o modelo fisiol�gico-neurol�gico. Mas n�o soube inscrever a psican�lise como uma disciplina integral na universidade. O que fez com que sempre tenha sido ensinada nos departamentos de Psicologia, Antropologia, Sociologia, Literatura e Filosofia. Teria podido faz�-lo? N�o sei, talvez n�o. Talvez o destino da psican�lise seja o de n�o ser uma disciplina � parte. Mas hoje estamos novamente em um retrocesso, na ideia de que o corpo e o movimento s�o mais importantes do que a palavra. Mas isto n�o vai durar. Estamos numa encruzilhada, se foi muito longe na explica��o estritamente qu�mica e org�nica do inconsciente. A psiquiatria biol�gica n�o existe mais como psiquiatria, ela � qu�mica. H� uma contesta��o. Quando se questiona a os resultados de Freud com seus pacientes, sua resposta � a de que a t�cnica psicanal�tica trata as neuroses, n�o as psicoses. Durante trinta anos houve um reinado do "tudo qu�mico". Isto est� acabando. N�o por um retorno � psican�lise, mas como explica��o demasiado totalit�ria, e pela rejei��o dos pacientes. Freud elaborou uma cl�nica aplicada em seu in�cio �s neuroses. Mas eram neuroses graves. Ele mudou, a partir de 1914 percebeu a incurabilidade. Depois, o saber psicanal�tico dominou toda a psiquiatria do s�culo 20. Foi uma boa coisa. Antes do aparecimento dos psicotr�picos, era melhor ir em cl�nicas nas quais havia uma abordagem psicanal�tica do que ser um simples sujeito de sanat�rio. A partir de 1945, os antigos asilos esvaziaram, foi um enorme progresso. E a ideia de combinar a cura pela palavra com medicamentos, para as psicoses, � uma bela defini��o. Sabemos que para um melhor tratamento da loucura s�o necess�rias tr�s abordagens, de meio ambiente, ps�quica e medical. O problema � que mas nossas sociedades de hoje, com economias or�ament�rias draconianas, n�o temos os meios de curar os loucos com os tr�s meios. Ent�o se passou ao "tudo qu�mico", que funciona mais r�pido, mas que � catastr�fico. A tripla abordagem se tornou imposs�vel. Nas sociedades precarizadas como as nossas, os doentes mentais e os prisioneiros s�o muito mal tratados.

No livro, a senhora desconstr�i "lendas" como as da autoan�lise ou do complexo de �dipo freudianos.

Eu desfa�o o complexo de �dipo. Freud n�o escreveu uma s� linha, exceto sobre o decl�nio do complexo de �dipo. Falou do complexo de �dipo por tudo, mas n�o teorizou. A psicologia edipiana n�o se sustenta. O complexo de �dipo como psicologia de fam�lia n�o funciona. O genial � fazer crer a cada neur�tico que ele � Hamlet ou �dipo em vez de um doente mental. � muito melhor ser um her�i de teatro do que um simples doente mental em um sanat�rio. E ele n�o foi capaz de escrever sobre a metapsicologia. A autoan�lise n�o existe, � uma lenda forte e inventada. O pr�prio Freud disse que era a "sua autoan�lise", mas n�o � uma autoan�lise, e sim uma passagem pelo erro para se alcan�ar a verdade. A correspond�ncia com Wilhelm Fliess (1858-1928) n�o � uma autoan�lise, mas uma err�ncia de s�bios. Ele errou no irracional para conseguir elaborar uma doutrina que sai da fisiologia. A "puls�o de morte", um dos momentos fortes de Freud, n�o come�a em 1919, mas em 1914, quando ele se pergunta, para introduzir o narcisismo, por que nos autodestru�mos. Penso tamb�m que Freud tinha a convic��o de que o que acontecia na realidade social j� estava no psiquismo. Isto � apaixonante. E tinha a convic��o de que o que ele mesmo dizia era revelador do inconsciente, e apenas traduzia, e que a realidade se passava como no inconsciente. Isto n�o � verdade, mas quanta aud�cia!

A senhora aponta como uma das grandes for�as de Freud a cria��o de mitos.

Outra aud�cia sua foi a de fundar uma ci�ncia fundada nos mitos, na racionalidade do estudo dos mitos. Cada livro de Freud provocou debates no mundo inteiro. Quando ele publica "Totem e tabu", que vai na contracorrente da antropologia moderna, o mundo acad�mico discute este ensaio completamente fora de moda. Isto significa que ele contribui com algo. Quando escreve seus tr�s ensaios sobre a teoria sexual, em vez de fazer um tratado se sexologia, o caso de todos seus contempor�neos, ele se ocupa da teoria sexual das crian�as. Para mostrar que o que se considerava como pervers�es n�o o era, e que somos todos perversos.

O que � a "revolu��o simb�lica" de Freud?

A lenda � a de que Freud inventou tudo, de que n�o deve nada a sua �poca. N�o � verdade. Ele inventa algo da ordem que defini como revolu��o simb�lica, remodelando as representa��es de sua �poca. Nisso ele � inovador. Quando se l� os psic�logos contempor�neos de Freud, que s�o v�lidos, sua superioridade intelectual, liter�ria e imaginativa � evidente. A fraqueza de Freud foi a de n�o poder introduzir esta disciplina na universidade. E sua for�a foi a de ter feito um movimento. Ele n�o cria uma seita, mas um movimento pol�tico, revolucion�rio, platonista. Ele e seus disc�pulos t�m consci�ncia desde o in�cio de serem portadores de uma revolu��o simb�lica. A prova � a de que possuem a preocupa��o da mem�ria e da hist�ria, contrariamente aos psicanalistas. Tinham o pressentimento de que seu mundo iria desaparecer, o que vai ocorrer primeiro com a Primeira Guerra Mundial, e uma segunda vez, com o nazismo. Aprecio nos primeiros freudianos � que se disputam todo o tempo e que admiram mas n�o idolatram Freud � este sentimento de que seu mundo vai perecer. Da� vem a imigra��o, e o fato de que se deve levar a todos os pa�ses do mundo a lembran�a de Viena. O ex�lio de Freud, sua casa, suas cole��es, � a ideia de que j� que tudo vai morrer com o nazismo, � preciso transportar a mem�ria do movimento. Arquivos, fotografias, tudo � transportado para Washington ou Londres. � um gesto incr�vel. Freud n�o crer acreditar que o nazismo vai engolir Viena. Ele sabe, mas n�o quer aceitar. Ele espera por Hitler, e face a essa puls�o de morte, personalizada em Hitler, recua at� o momento em que � preciso partir.

Entre as ditas "lendas fabricadas", como senhora diz, est�o suposi��es de Freud teria sofrido abuso sexual na sua inf�ncia, vivido uma rela��o com sua cunhada, abusado ele mesmo de sua sobrinha-neta ou em seu ex�lio em Londres abandonado suas irm�s, depois deportadas e exterminadas pelos nazistas.

Eu n�o encontrei nada disso nos arquivos. O que n�o se sabe � como foi a vida sexual de Freud antes de seu casamento. Ele teve provavelmente a adolesc�ncia de um jovem de Viena. N�o gostava de prost�bulos, do adult�rio. As mulheres se casavam virgens. N�o se sabe o que houve antes, mas se sabe o que veio depois. Ele tinha a necessidade de ter mulheres em seu entorno. Pratica a abstin�ncia, n�o quer outro filho. Sua cunhada ocupa um lugar muito particular. � uma segunda esposa n�o sexuada, ele mesmo o diz. Mas � preciso ser completamente louco hoje para colar retrospectivamente o que � a sexualidade atual sobre o que era naquela �poca. N�o h� verdades ocultas, mas quis invalidar os falsos rumores. Houve pessoas que negaram a exist�ncia do c�ncer de Freud, o que � fascinante. Ele tamb�m n�o recomendou a Gestapo. Desminto tudo isso. Se construiu uma m�quina de fantasias, sejam negras ou douradas, sobre o personagem.

A senhora coloca Freud no mesmo estatuto de Einstein, Darwin, Marx, Sartre, Simone de Beauvoir, Hannah Arendt ou Michel Foucault: pensadores rebeldes v�timas de rumores e injusti�as.

Marx se tornou um explorador de mulheres, repugnante, respons�vel pelo goulag. H� teorias revisionistas sobre Einstein que dizem n�o ter sido ele o criador da teoria da relatividade, mas sua mulher. E teria sido um pai abomin�vel porque tinha um filho psic�tico. Tudo isto n�o se sustenta. Sobre Darwin tamb�m se inventou muita coisa. E sobre Simone de Beauvoir ou Sartre, que foi coberto de inj�rias. Foucault foi acusado de ser respons�vel pela transmiss�o da Aids, e Jacques Derrida, de nazista. Para mim tudo isto deve ser banido. S�o vis�es apocal�pticas. Sobre Freud, se discutiu quem teria lhe dado a �ltima inje��o. Se pretendeu que se teria ocultado o seu uso de coca�na, o que n�o � verdade. Se acusou Freud de introduzir a coca�na no mundo moderno. E o Freud fascista, amigo de Mussolini? Isso nunca. Sim, ele fez uma dedicat�ria a Mussolini, mas � preciso contextualizar. H� frases que Freud n�o pronunciou e que lhe s�o atribu�das. H� textos interpretados de forma equivocada, sem o contexto. H� de tudo. Estranhamente, os antifreudianos radicais n�o criticaram o que � critic�vel em Freud.

Por exemplo?

N�o notaram muito as err�ncias de Freud. Passam seu tempo a valorizar teses aberrantes para melhor criticar Freud. Os antifreudianos radicais pensam que Williem Fliess tinha raz�o contra Freud. N�o sou por Wilhem Reich (1897-1957) contra Freud, por Otto Gross (1877-1920) contra Freud. N�o � isto que se deve fazer, mas mostrar como o pr�prio Freud adota teorias extravagantes. � normal que Fliess seja hoje esquecido, ele tinha um sistema de pensamento irracional, mas fascinante. Pode-se ter muita simpatia por Reich, como eu tenho,, mas a teoria do org�nio � delirante. Os antifreudianos radicais passam todo o tempo a procurar antiher�is, n�o usam as verdadeiras cr�ticas que poderiam ser feitas a Freud.

A senhora v� hoje uma crise do pensamento filos�fico e da psican�lise hoje na Fran�a?

Estamos numa crise de heran�a na Fran�a, passageira, mas numa crise europeia, mundial do pensamento. H� hoje na Fran�a uma renova��o evidente da filosofia, h� uma gera��o de 40 anos que vai ser conhecida. H� uma renova��o da antropologia, da sociologia. Menos para a psican�lise, porque eles est�o acantonados na cl�nica. Da� a import�ncia de um retorno de um Freud hist�rico. Penso que sa�mos de um per�odo dif�cil do �dio a Freud, e hoje � preciso l�-lo de outra forma, como uma necessidade para os psicanalistas. H� trinta anos, os n�o psicanalistas leem melhor Freud do que os psicanalistas. O que n�o quer dizer que sejam maus cl�nicos. Eles n�o situam Freud na cultura do tempo de Freud, e assim n�o sabem situ�-lo em nosso tempo. "Em seu tempo e no nosso" quer dizer: Freud que se constr�i em seu tempo e que nos ilumina no nosso.

(Fonte: O Globo)


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Por:  Roney Moraes    |      Imprimir