Categoria Geral  Noticia Atualizada em 19-02-2015

G1 já viu: "Sniper americano" erra alvo na política e acerta
Clint Eastwood faz patriotismo cinematográfico ao exaltar franco-atirador. Bradley Cooper é protagonista; filme tem tensão mesmo com visão limitada.
G1 já viu:
Foto: g1.globo.com

O personagem central de "Sniper americano", Chris Kyle, é um virtuoso da pontaria. Já o diretor do filme, Clint Eastwood, é míope – ao menos em termos políticos. Kyle (Bradley Cooper, muito bem no papel) tem habilidade para disparar um tiro a 2 km de distância e acertar o alvo – ou, mais precisamente, a cabeça deste alvo. Já a percepção que Eastwood (rematado republicano e patriota) tem da conjuntura internacional carece desta destreza. O filme estreia nesta quinta-feira (19).

Não fosse assim, o cineasta julgaria inadmissível manipular a audiência e descaradamente saltar do 11 de setembro ao Iraque. Sem escalas. Mas é o que ele admite e é o que ele faz: no planeta Eastwood, invade-se o país de Saddam Hussein (em 2003) em resposta aos aviões que botaram abaixo o World Trade Center (em 2001).

Quanto a isso, diga-se logo, "Sniper americano" é quase um crime de lesa história. Mas crimes de lesa história não são crimes cinematográficos. E esta última é uma modalidade que Eastwood, se pratica, pratica pouco e em nível tolerável. O filme tem dois propósitos primordiais: fazer faroeste no Oriente Médio e celebrar um herói. O franco-atirador Chris Kyle realmente existiu e é propagandeado como o mais letal da história dos Estados Unidos. Em quatro passeios pelo Iraque, eliminou 160 inimigos. É uma conta modesta: especula-se que o número de vítimas supere 200.

No limite, "Sniper americano" sai-se bem em ambos os objetivos, ainda que sem honras civis ou militares: Clint Eastwood sabe filmar (preste atenção na cena do conflito durante uma tempestade de areia), sabe ordenar uma narrativa para criar tensão e, sobretudo, sabe jogar para a torcida e ganhar a adesão do espectador. E também da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. "Sniper americano" concorre em seis categorias no Oscar, incluindo melhor filme e melhor ator para Bradley Cooper.

O diretor ainda empreende algum esforço para fazer "Sniper americano" parecer pior do que é. O rival do herói, por exemplo, surge como uma figura constrangedora. Ex-campeão olímpico de tiro pela Síria, ele resolveu virar franco-atirador e, em cena, mostra ter noções avançadas de les parkour, saltando de telhado em telhado por uma Bagdá tomada por disparos e explosões. E, antes de sair para o serviço, este inimigo-atleta amarra faixa na cabeça à Sylvester Stallone. É uma caricatura tão imbecil que, pela lógica muito própria do filme, não ficaria mal se a senhora do sujeito fosse a Miss Iraque 2001.

E Chris Kyle, tirando seu aguçado senso de dever e obediência, não é lá grande coisa. Seu senso geopolítico é pré-escolar. Ex-caubói texano, ele se alista tardiamente, em torno dos 30 anos de idade. Ainda no início, alguém pergunta: "Mas por que você quer ir para o Iraque defender o seu país?". A resposta: "Porque é o melhor país do mundo". Seria mais eloquente se dissesse algo como: "Amo a América pois ela deu ao mundo o cheese burger e a Beyoncé".

Mesmo assim, é possível torcer para este homem que é escravo (voluntário) do próprio dom. Se no começo ele mata porque a vida (a guerra) é assim e não importa se são crianças ou mulheres, pouco a pouco vai sendo apresentado o efeito colateral da postura. Kyle volta para a casa e não consegue se vincular à esposa e aos filhos pequenos. Tem mais jeito com fuzis do que com bebês. E fica com a pressão alta. Sim: Eastwood está simplório ("Guerra ao terror", com o mesmo tema, é mais filme), mas dá sentido à decadência e à desumanidade do sniper. E ele teimará em restituir a própria humanidade.

É justo, ou obrigatório, reconhecer a parcialidade da visão de "Sniper americano". E reconhecer que o filme é menor que seu criador. Eastwood, afinal, carrega o status merecido de ser um dos maiores de todos os cineastas. Assinou "Um mundo perfeito", "Gran Torino", "Menina de ouro". E, já que estamos falando de faroeste, assinou "Os imperdoáveis", no qual um pistoleiro já velho explica a um jovem o que significa matar alguém: "É tirar tudo o que ele tem e tudo o que ele alguma vez terá".
"Sniper americano" não chega a este tipo de franqueza e reflexão. Mas não se pode ignorar que aqui Eastwood, como de hábito, reconhece a violência e depois a enfrenta. Do contrário, a cena mais emocionante de todo o filme não seria aquela em que o Chris Kyle torce para evitar exercer seu ofício e abrir mão de puxar o gatilho.

Fonte: g1.globo.com
 
Por:  Desirée Duque    |      Imprimir