Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 21-10-2006

A COISA QUE NíO TEM NOME
Eu também recebi o e-mail maldito com fotos das vítimas do acidente ocorrido com o vôo um nove zero sete.
A COISA QUE NíO TEM NOME

Eu também recebi o e-mail maldito com fotos das vítimas do acidente ocorrido com o vôo um nove zero sete. Que força estranha é essa, que há dentro de nós, e que nos impulsiona para o macabro e o tenebroso? E o pior é que mesmo sujeitos fracos diante do horror – como eu, que tive que me retirar da aula de primeiros socorros na auto-escola num estado deplorável de tontura e enjôo – não resistem e acabam indo ver. Sabemos que vamos nos arrepender de ter olhado, temos certeza de que aquela cena vai nos atrapalhar o jantar e o sono, mas abrimos os olhos e nos deixamos vencer pela nossa fraqueza congênita.

São Paulo escreveu: "não consigo entender nem mesmo o que eu faço; pois não faço aquilo que eu quero, mas aquilo que mais detesto" (Carta aos Romanos, capítulo 7, versículo 15). Afora a intenção principal do apóstolo, que era tecer um comentário sobre a força do pecado, há aqui a constatação fundamental de que nem a razão, nem a arte, nem a cultura, nem a religião eximem o ser humano desse seu lado azedo – à la pecado original – ou recôndito – à la superego freudiano.

Nós somos mais do que códigos genéticos, racionalidade e construções sociais. E somos infinitamente mais – ou menos? – do que a junção desses elementos todos. No romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, um personagem conclui que "dentro de nós há uma coisa que não tem nome; essa coisa é o que somos" (p. 262).

Outro dia, um homem ao meu lado esbarrou com sua bolsa no braço de um outro que estava sentado preenchendo um formulário, que por sua vez levantou-se e empurrou o desajeitado que, também por sua vez, ofendeu gravemente a progenitora do nervoso, que falou-lhe de sangue e outras baixezas. Senti, na ebulição do momento, que estava em jogo ali muito mais do que um formulário ou a honra de um macho: era algo mesmo que vinha do mais profundo de cada um – inclusive de nós, espectadores – e que sentia certo gozo com a violência e a desordem. É disso que falo. Essa inclinação humana básica, controlada mas na verdade incontrolável, é a responsável tanto pela publicação das fotos do acidente aéreo quanto pelo orgulho religioso do muçulmano que diz a um papa: "se você disser que eu sou violento, mando-lhe uma bomba em cima".

Nietzsche e sua filosofia do absurdo elogiam essa potência elementar personificando-a na figura do Super-homem em seu Assim falava Zaratustra. Os judeus transfiguraram isso no rito do bode expiatório enviado a Asmodeu. Os cristãos contemplam esse paradoxo na duplicidade bênção-maldição ao adorar o madeiro da cruz. O hinduísmo de Gandhi derrubou o império sem pôr-do-sol com a canalização do terror na prática da não-violência. Osama bin Landen e George W. Bush despacham esses encostos interiores ora nos civis afegãos ora nos trabalhadores das torres gêmeas. E aquele torcedor acabou enfeiando seu espírito esportivo ao espancar o rapaz do time adversário.

Todas essas são expressões da mesma coisa que não tem nome mas que sabemos estar adormecida lá dentro, como um vulcão pronto para erupções. Toda a teia da nossa vida é construída com a mistura do tesão e do medo; e ambos são expressões desta mesma coisa.


    Fonte: Redação Maratimba.com
 
Por:  Juliano Ribeiro Almeida    |      Imprimir