Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 03-08-2007

SEGREDO
Quis o destino que eu fosse morar na mesma rua do ateli� de Chico Bras. Em maio de 2006 mudamos para uma casa na Rio Grande do Norte
SEGREDO

Quis o destino que eu fosse morar na mesma rua do ateli� de Chico Bras. Em maio de 2006 mudamos para uma casa na Rio Grande do Norte, bem pr�ximo ao casar�o desocupado que num passado recente viveu a ilus�o de ser o grande ateli� de artes de Marata�zes(ver cr�nica Jesus Despeda�ado). Casa com um quintal razo�vel e uma bela varandinha de frente para a rua, de onde pod�amos acompanhar todos os acontecimentos de maneira privilegiada, como se estiv�ssemos em um camarote.

Foi dali, da varandinha, que vi chegar o Segredo naquela tarde de domingo. Vinha no seu passo tranq�ilo, trotando como um puro sangue. N�o menos tranq�ilo vinha o cavaleiro, Seu Antonio, p�s descal�os, chap�u desgastado, camisa aberta no peito, pernas das cal�as dobradas at� a canela. N�o lembravam, nem por um segundo, a figura de um j�quei a desfilar na pista montado em seu alaz�o voador.

Conheci Seu Antonio logo que mudamos para a nova casa, minha mulher passou a contar com seus servi�os para manter o terreno baldio ao lado sempre bem capinado, as pequenas �rvores da frente sempre podadas; criou at� um sistema de drenagem para a �gua que se acumulava na rua nos dias de chuva impedindo nossa entrada. O sistema, na realidade, n�o passava de um buraco cavado no terreno baldio. Buraco que, n�o fosse pela interfer�ncia de minha mulher, por pouco n�o se transformaria num po�o, tal a energia empregada por Seu Antonio. Magro, pele curtida de sol, m�os repletas de calos e p�s cobertos de escamas, um verdadeiro filho da ro�a, preparado para qualquer tipo de trabalho que utilizasse fac�o, enxada, ou qualquer outro instrumento cortante.

Segredo fora apresentado alguns meses antes daquele domingo de dezembro. Costumava pastar serenamente no terreno baldio sem se importunar com a presen�a do casal de corujas e seus filhotes que ali faziam morada. N�o chegava a ser um pangar�, mas tamb�m n�o pertencia a nenhuma linhagem puro sangue. Estava um tanto quanto barrigudo, pois passava a maior parte do dia pastando em terrenos abandonados na Vila de Itapemirim.

O motivo da chegada dos dois nobres visitantes era uma promessa feita por Seu Antonio para meu filho. Sempre que se encontravam Seu Antonio prometia-lhe trazer o Segredo para ser montado por ele. Finalmente chegara o dia de cumprir a promessa. Ao ouvir a voz rouca e inconfund�vel de Seu Antonio e ao sentir o cheiro de suor de Segredo, Henrique disparou do fundo da casa para a rua junto com minha sobrinha adolescente.

Em poucos minutos a festa j� estava formada e eu me vi na obriga��o de pegar minha c�mera para gravar as cenas de equita��o que se apresentavam. Primeiro Seu Antonio deu a meu filho instru��es detalhadas de como controlar o cavalo e faz�-lo obedecer a todos os seus comandos. Depois, ajudou-o a subir no animal, ajeitar-se na sela e a segurar a cordinha que faz a vez do volante. Como � natural a toda crian�a, Henrique titubeou um pouco na largada, mas logo dominou a situa��o. Depois da primeira volta n�o tinha mais segredo, Segredo mesmo, s� o cavalo que obedecia cegamente a todos os comandos do j�quei mirim. E eu ali, s� gravando...

Chegou mais gente, Cec�lia, minha esposa; uma das v�rias filhas de Seu Antonio e uma neta. Organizaram uma fila. Terminado o passeio do Henrique, foi a vez da minha sobrinha. Acostumada desde pequena na montaria, deu um verdadeiro show, seguida por Cec�lia que tamb�m tinha l� suas habilidades como amazona. Depois delas vieram a filha de Seu Antonio que certamente n�o herdou o talento do pai, mas que n�o decepcionou porque o Segredo tamb�m dela nada exigiu a n�o ser segurar a cordinha e dar umas batidinhas de p�s nas suas costelas cansadas e, finalmente, a neta, que apesar do medo cumpriu a miss�o com galhardia. E eu ali, s� gravando...
Foi ent�o que ouvi a frase infeliz: "agora � o tio Paulo!" Tentei de todas as maneiras me esquivar, mas n�o houve jeito, o resto da galera j� havia comprado a id�ia da minha sobrinha, inclusive Seu Antonio e o calhorda do Segredo a me olhar com aquele olhar de cavalo matreiro. Nem a desculpa de que estava gravando adiantou, tr�s cinegrafistas amadores surgiram de imediato. E eu ali, sem sa�da...

A primeira lembran�a que me veio � cabe�a depois de entregar os pontos, foi a de que j� tinha visto esse filme antes. Mais precisamente, oito anos atr�s, quando o Henrique estava com um ano e Ra�ssa, minha sobrinha, com oito, num pesque-pague qualquer l� no alto da serra. Com certeza a mesma lembran�a passou pela cabe�a de Ra�ssa, da�, a infeliz id�ia. Na �poca, ainda morava em S�o Paulo e o �nico ve�culo que tinha conseguido dirigir at� o momento tinha quatro rodas. Uns dois anos antes minha tentativa de aprender a andar de bicicleta depois de velho tinha terminado em v�rias quedas e arranh�es espalhados pelas pernas. Com o cavalo n�o chegou a haver nenhum acidente, s� aquela sensa��o de estar fazendo papel rid�culo em cima de um animal cansado sendo puxado por um menino que n�o tinha mais do que sete anos.

Como diria uma ministra do turismo, se n�o tem outro jeito, relaxa e goza... Aproximei-me cauteloso do Segredo que me olhava com um olhar cansado. Seu Antonio n�o cabia em si de contentamento. Alertou-me sobre os segredos do Segredo, orientou-me sobre a melhor forma de conduzi-lo e finalizou a prele��o com uma frase de efeito: "n�o esquece, home, voc� � que manda nele!" Juntou as duas m�os em concha e com elas me lan�ou como um foguete nas costas do alaz�o. Assim que desabei na sela, entregou-me a fat�dica cordinha junto com a frase de efeito � "n�o esquece, hein, voc� � que manda!". Ser� que o Segredo ouviu isso? � pensei, mas a express�o dele quando virou o pesco�o para tr�s e me encarou era a de um cavalo ensimesmado, preocupado apenas com assuntos eq�inos. E minha mulher ali, s� gravando...

Os primeiros passos da minha jornada deram-ne a falsa impress�o de que tudo estava sob controle. Bastava n�o descuidar da cordinha. Uma puxadinha na m�o esquerda e Segredo virava para esse lado, uma puxadinha na m�o direita, l� ia ele para o lado direito. As duas m�os puxadas juntas para tr�s funcionavam como um freio. Tranq�ilo! Fui calmamente seguindo meu percurso at� o cruzamento com a Goi�s, uma puxadinha pra direita, de leve, e j� est�vamos voltando numa monotonia extrema. Quem sabe quando cheg�ssemos ao ponto de partida a coisa perdesse a gra�a e ningu�m se incomodasse em terminar ali mesmo minha segunda cavalgada solit�ria? Quando est�vamos passando em frente ao terreno baldio, Segredo revelou o que estava por tr�s daquele olhar matreiro. Puxei a cordinha pra direita e ele foi pra esquerda, quanto mais puxava pra direita, mais ele ia pra esquerda at� abandonar de vez a rua e entrar mato adentro no terreno baldio. E minha mulher ali, s� gravando...

Comecei a suar frio ao ouvir as primeiras gargalhadas. J� n�o sabia mais pra que lado puxar a maldita cordinha porque o tal do Segredo passou a me ignorar por completo. Ouvia o pessoal em coro gritando � "Volta, volta!" Segredo parou, n�o por ordem minha, � claro, por causa da parede de cimento que anunciava o fim do terreno baldio. Parou e come�ou a pastar como se n�o houvesse ningu�m em cima dele, pra meu desespero e do casal de corujas que passou a dar v�os rasantes sobre a minha cabe�a. Ouvia ao mesmo tempo o som das asas das corujas, do gargalhar da plat�ia e do ranger de dentes do desgra�ado do Segredo. E minha mulher ali, s� gravando...

Fui salvo pelo Seu Antonio que tomou a cordinha da minha m�o e resgatou cavalo e cavaleiro sob os olhares dos curiosos que, a essas alturas j� havia duplicado. Chegamos, finalmente, ao ponto de partida. Eu, com aquele ar sem gra�a, o rosto queimando, e o safardana do Segredo mastigando um resto de capim, nem a� para a minha vexat�ria situa��o. Assim que pisei o ch�o novamente ainda tive que ouvir a conclus�o filos�fica do Seu Antonio.

- Interessante, como os animal conhece quem n�o entende nada de montaria!

E minha mulher ali, s� gravando...

Fonte: O Autor
 
Por:  Paulo Araujo    |      Imprimir