Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 09-08-2007

UM NEOSALDINA PARA O TECO
Uma das coisas que mais estranhei quando cai de p�ra-quedas em Marata�zes foi o ritmo de vida dos maratimbas. Rec�m chegado de S�o Paulo, a terra da correria, custei a me acostumar com uma vida sem rel�gio
UM NEOSALDINA PARA O TECO

Uma das coisas que mais estranhei quando cai de p�ra-quedas em Marata�zes foi o ritmo de vida dos maratimbas. Rec�m chegado de S�o Paulo, a terra da correria, custei a me acostumar com uma vida sem rel�gio. Trazia o stress no sangue e a fuma�a urbana nos pulm�es. O primeiro ano foi dif�cil, isso l� por meados de 2002. Mor�vamos no bairro do Ju�, depois do Xod� e eu n�o tinha quase nada a fazer a n�o ser curtir a praia com a minha fam�lia e esperar o tempo passar, coisa bem diferente do que fiz a vida inteira, ou seja, correr atr�s do tempo.

Por essa �poca conheci Teco e Telmo. Estava com a cabeleira j� bem avantajada e precisava de um corte decente, pois teria uma entrevista de emprego em Cachoeiro na semana seguinte. Perambulando pelas ruas do centro em busca de uma barbearia, fui atra�do pelo nome do estabelecimento, o qual me transportou para minha inf�ncia. Lembrei-me, de imediato, daqueles dois esquilinhos espoletas, Tico e Teco. Entrei. Ao me deparar com o Teco, veio-me � lembran�a outra figura conhecida das revistas, o Amigo da On�a. Nada a ver com a personalidade de meu futuro barbeiro e sim com o seu aspecto f�sico. Magro, cabelo preto bem pintado(como o meu, �s vezes), bigode avantajado no rosto afilado e avental branco cobrindo o corpo delgado. Enquanto esperava minha vez, sentado na cadeira de pernas finas, lendo folhas esparsas de A Gazeta, observava meus esquilinhos trabalhando. Teco, extremamente calmo, movimentos lentos, voz baixa, quase que cochichando no ouvido do cliente; Telmo, agitado, gestos largos, voz rouca, falando pelos cotovelos bem mais carnudos que os do Teco. O contraste chamou logo minha aten��o. Teco mantinha a conversinha de p� de orelha enquanto que Telmo falava para a barbearia toda, at� mesmo para quem caminhava na cal�ada.

O tempo passou e meus conhecimentos a respeito da dupla se ampliaram a ponto de cada ida � barbearia ser um motivo de divers�o. Descobri, por exemplo, que apesar do estilo zen do Teco trabalhar, por tr�s daquela calma toda existe um estressado. Fui descobrindo isso aos poucos, nas conversinhas de p� de orelha que costumamos manter enquanto chuma�os de cabelos rolam pelo ch�o da barbearia. Essas conversinhas muitas vezes s�o entremeadas por queixas, principalmente no ver�o quando o movimento aumenta sensivelmente para os padr�es Teco e Telmo. � nessas horas que o stress vem � tona e tudo come�a a incomod�-lo, causando freq�entes dores de cabe�a que s� abrandam � base de Neosaldina. Afora os momentos estressantes nos hor�rios de rush da barbearia, Teco j� me confidenciou v�rias vezes o tormento por que passa quando tem de ir a Cachoeiro, especialmente no final do ano. Enfrentar aquele calor, as ruas e lojas cheias de gente s� depois de tomar dois comprimidos de Neosaldina logo na partida. Para ele, mesmo Marata�zes mudou muito, cresceu, n�o � mais a cidade calma de tempos atr�s.

Certo dia cheguei � barbearia justamente no hor�rio de rush. Um velhinho sentado na cadeira do Teco, um pescador na do Telmo, quase todos os bancos tomados por barbudos e cabeludos, a televis�o ligada no �ltimo volume, concorrendo apenas com o barulho do ventilador assoprando da porta pra dentro e com a voz do Telmo discutindo com um eletricista sobre a instala��o de l�mpadas fluorescentes no teto do sal�o. No meio de tudo isso a dor de cabe�a do Teco. Quando finalmente sentei-me na cadeira e fui coberto do pesco�o pra baixo pelo len�ol azul, pude avaliar melhor o drama de meu cabeleireiro( que ele n�o me ou�a; se ouvir, que entenda barbeiro!). Enquanto falava de coisas amenas, os trope�os do Vasco, as discuss�es costumeiras com Dona Encrenca, os problemas de sa�de de sua cachorrinha, a festa de Cachoeiro que se aproximava, Teco deixava escapar a insatisfa��o com aquela confus�o toda. A discuss�o do Telmo com o eletricista j� dava sinais de que poderia evoluir para uma briga. Ele culpava o homem pelo servi�o mal feito, motivo por que as l�mpadas n�o se acendiam e o eletricista rebatia dizendo que o problema estava no gerador que n�o era de partida r�pida. O eletricista tinha a voz fina e estridente tal qual um can�rio belga no �xtase de seu canto; para compensar, Telmo, que naquele dia estava com a voz mais rouca ainda, aumentava o volume. Junto com o volume, aumentava a dor de cabe�a do Teco. J� havia engolido tr�s Neosaldina e nada da discuss�o acabar. Eu sentia a tesoura tremendo na minha cabe�a, junto com os desabafos: "N�o ag�ento mais isso, me d� uma dor de cabe�a, essa discuss�o n�o acaba..."

Na tentativa de acalm�-lo, eu desviava o assunto para casos antigos de inf�ncia e ele me falava das aulas que matava para ir ao cinema em Cachoeiro, ou ent�o, do tempo em que trabalhava com os peixeiros, dirigindo o caminh�o frigor�fico. Naquela �poca ele gostava de tomar umas e outras e bater papo com o pessoal dos lugarejos por onde passava, se envolvia tanto na conversa e acabava vendendo fiado ou presenteando os amigos com pescadas e pero�s, o que resultava em discuss�es freq�entes com o dono da peixaria. N�o adiantava, era s� dar uma pausa e voltava a pendenga da partida r�pida contra a partida lenta, da voz estridente contra a voz rouca. Teco j� chegava at� a falar em aposentadoria. Nem Neosaldina melhorava mais a situa��o que s� foi resolvida pela sua interven��o decidida. Partida r�pida ou partida lenta, o homem que viesse consertar as lumin�rias depois do expediente e que acabasse logo aquela discuss�o antes que a cabe�a dele explodisse!

O can�rio belga se foi, o ventilador e a televis�o continuaram disputando pra ver quem torrava mais o saco de todo mundo, o Telmo reduziu o volume, mas sua voz rouca continuou envolvendo o ambiente numa freq��ncia mais baixa, Teco engoliu mais um Neosaldina e a paz voltou a reinar na barbearia.

Fonte: O Autor
 
Por:  Paulo Araujo    |      Imprimir