Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 01-10-2007

NA MARGEM DO RIO ADOUR
�Quando tiro os �culos, ainda posso ver o caminho. N�o posso ver os detalhes, mas posso ver o caminho�.
NA MARGEM DO RIO ADOUR

"Quando tiro os �culos, ainda posso ver o caminho. N�o posso ver os detalhes, mas posso ver o caminho".Diz minha mulher, com miopia de + 6,5 graus, enquanto andamos por um campo de milho, nestas f�rias europ�ias.

Digo que a mesma coisa acontece comigo: embora n�o seja m�ope, �s vezes n�o posso ver os detalhes, mas sempre procuro manter os olhos fixos nas minhas escolhas.

Terminamos em um rio no meio de lugar nenhum, perto do vilarejo de Arcizac-Adour. E de repente, me lembro que fiz uma promessa, e ainda n�o cumpri. Neste rio est�vamos os dois sentados, tr�s anos atr�s, quando vimos uma linda mulher, com botas imperme�veis at� os joelhos, caminhando pelo seu leito com um saco nos ombros. Ao nos ver, se aproximou:

- Conhe�o Jacqueline (uma amiga). Pedi que ela nos apresentasse, e ela me respondeu: voc� ir� encontr�-lo quando menos esperar. Meu nome � Isabelle Labaune.

Explicou que estava ali limpando o rio de eventuais detritos (garrafas de pl�stico e latas de cerveja, que eram carregadas pela correnteza), mas que sua verdadeira paix�o eram os cavalos. Naquela tarde fomos visitar seu haras.

Isabelle tinha uns doze animais, e fazia tudo absolutamente sozinha � aliment�-los, manter o lugar limpo, arrumar os est�bulos, consertar as telhas, enfim tudo aquilo que deixaria qualquer pessoa alucinada com tanto trabalho.

- Criei uma associa��o para as pessoas com problemas mentais de nascen�a. Tenho absoluta certeza que a equita��o permite que elas sintam-se amadas, integradas na sociedade.

Sempre que vinha passar f�rias na regi�o, encontrava-me com Isabelle. Chegavam alguns micro-�nibus com jovens com S�ndrome de Down, que montavam nos magn�ficos cavalos, e passeavam pelos rios, florestas, e parques. Nunca houve um acidente sequer. Os pais ficavam com l�grimas nos olhos, e Isabelle com um sorriso nos l�bios. Tinha um imenso orgulho do que fazia: acordava as cinco da manh�, trabalhava o dia inteiro, e ia dormir cedo, exausta.

Era uma mulher jovem e muito atraente. Mas n�o tinha namorado:

- Todo homem que aparece em minha vida quer que eu seja dona-de-casa. Mas eu tenho um sonho. Sofro por estar sozinha, mas sofreria mais se abandonasse o sentido da minha vida.

A situa��o mudou logo no in�cio de 2006. Certa tarde, quando fui visit�-la, me disse que estava apaixonada. E que seu namorado aceitava seu ritmo de vida e estava disposto a ajud�-la no que fosse necess�rio.

Alguns dias depois fui viajar para o Brasil. Penso que em outubro recebi uma mensagem sua na secret�ria eletr�nica do meu celular: gostaria de me ver � mas eu estava longe e n�o dei muita import�ncia, porque nas cidades do interior nada se passa com muita urg�ncia.

Quando retornei aos Pirineus, j� em dezembro, fui almo�ar com Jacqueline. Foi a� que soube que Isabelle havia morrido de um c�ncer fulminante.

Naquela noite, acendi uma fogueira no meu jardim. Fiquei sozinho, olhando as chamas, pensando em uma mulher que s� havia feito o bem em sua vida, e que Deus havia levado t�o cedo. N�o chorei, mas senti um profundo amor no ar, como se ela estivesse presente em tudo � minha volta. No dia seguinte, recebi o telefonema do namorado, que me pediu que escrevesse alguma coisa sobre ela: havia partido, e ningu�m jamais conhecera o seu trabalho.

Prometi que faria isso. Mas s� hoje, quando passamos diante do mesmo rio, e nos sentamos no mesmo lugar, foi que me lembrei que tinha assumido o compromisso, e agora o estou cumprindo. Das muitas pessoas que conheci em minha vida, uma das mais pr�ximas da santidade � Isabelle Labaune.

Fonte: O Autor
 
Por:  Paulo Coelho    |      Imprimir