Categoria Politica  Noticia Atualizada em 16-09-2008

Crise política muda vida de universitários brasileiros
O mato-grossense Claudinei Pereira (segundo à dir.) ao lado de colegas brasileiros e bolivianos do curso de medicina
Crise política muda vida de universitários brasileiros
Foto: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto
Enviado especial do UOL
Em Santa Cruz de la Sierra (Bolívia)

Estudar medicina na Bolívia custa 10% do que o brasileiro gastaria nas universidades de seu país. Mas essa economia tem seus percalços. Um deles é, na volta ao Brasil, ter de entrar na Justiça pelo direito de concorrer ao título do CRM (Conselho Regional de Medicina) e exercer a profissão em sua terra. Outro obstáculo é enfrentar a conturbada realidade boliviana e o separatismo presente em Santa Cruz de La Sierra, onde está a maioria dos estudantes no país vizinho.

"Tenho que matar as aulas da noite para chegar em casa antes que o quebra-pau comece lá pelas 20h. Se não, é pedra e pau prá todo lado", conta o mato-grossense Claudinei Pereira, que está no terceiro ano na universidade Udabol. "Na semana assada, o ônibus que pego para ir para casa me deixou a três quilômetros de lá, porque havia barreiras dos dois movimentos políticos. Foi muito perigoso", diz o mato-grossense que mora no bairro popular Plan 3.000, que tem maioria de partidários do presidente Evo Morales.


O clima de tensão levou centenas de estudantes a se cadastrarem no consulado na cidade, medida necessária em caso de evacuação de pessoas. O vice-cônsul Claudio Bezerra da Silva confirmou que havia plano caso uma guerra civil começasse por lá. "Há entre 5.000 e 7.000 conterrâneos por aqui. Isso iria demandar muitos aviões para levá-los", conta o diplomata. Santa Cruz fica a 650 km da fronteira brasileira, mas as ligações por terra (uma boa estrada de ferro e outra, ruim, de asfalto e terra) já estão bloqueadas por movimentos camponeses e seriam muito perigosas se o conflito se agravasse.

"O sentimento é de muita insegurança. Até para ir ao comércio ou ao banco você fica com medo de dar de cara com um apedrejamento ou arrastão. Melhor ficar em casa", afirma a piauiense Sayonara Aguiar, no segundo ano do curso. Ela conta que a própria agência do Banco do Brasil ficou fechada na semana passada.

É justamente pelo número de contas bancárias que se tem dimensão do contingente nacional na cidade boliviana. São cerca de 7.000 contas correntes, contra apenas 2.500 brasileiros cadastrados no consulado. "Na última semana, o medo de guerra fez os jovens se regularizarem. Foram mais de 600 em dois dias", relata o vice-cônsul.

O paulistano Renato Brambilla, 18, disse que os pais queriam que ele voltasse, junto com o irmão Renan, que também estuda por lá. "Eles ficaram muito preocupados. Eu mesmo fiquei com medo uma hora, mas tentei acalmá-los", conta o adolescente vestindo a camiseta são-paulina na saída da faculdade.

Outros aprendizes de médico viram os resultados dos enfrentamentos mais de perto. "Fomos fazer um trabalho de controle em bairro pobre, medir pressão, essas coisas. Encontramos muita gente ferida, principalmente na cabeça e de paulada. Até saiu um tumulto lá enquanto estávamos atendendo", descreve o mineiro Luciano Nascimento, no terceiro ano.

Outros viram da janela do ônibus que os leva para casa os grupos saqueando as repartições públicas. "Eram uns 200 caras, a maioria encapuzada. Eles entraram no prédio da Entel é quebraram tudo. A polícia não fez nada", relata o paulista Eusmar Brito sobre a invasão da sede da empresa telefônica estatizada pelo governo Morales recentemente.

Os brasileiros são atraídos pelas mensalidades baratas. Paga-se no máximo R$ 180, contra as cifras que começam com R$ 1.000 e podem chegar a R$ 3.000 nas universidades brasileiras. O porém é que terão de desembolsar R$ 5.000 no processo judicial para poder concorrer ao certificado do CRM. Mesmo assim é uma solução mais em conta - fora que o custo de vida na Bolívia é bem mais baixo.

O problema é que os brasileiros são muito visados pelos ladrões locais. "Eles acham que porque somos de fora e o Brasil é mais rico, temos muito dinheiro. Já fui assaltado perto da faculdade, com muita violência e me apontaram arma", afirma o mineiro Madson Rodrigues. Há relatos também de colegas que, pela distância da família e pela facilidade de obter cocaína em um país produtor, abandonam o curso e viram "nóia" pelas ruas bolivianas.

E os estudantes contam que a polícia é muito corrupta, até para os padrões brasileiros. "Para registrar queixa tem que pagar 400 bolivianos (R$ 90). Encontrei aqui a moto que me roubaram no Brasil, sem placa, mas o policial queria me subornar para liberá-la", denuncia Brito. Segundo os brasileiros, a higiene é outro obstáculo. "Não tem brasileiro que não tenha salmonela quando chega na Bolívia. A sujeira é braba aqui. Eles vendem um suco que todos bebem no mesmo copo", aponta o paulista.

A crise atual que divide o país em dois, uma Bolívia da altitude e indígena e outra da planície e cabocla, acabou até por reduzir a rixa com os brasileiros, especialmente no futebol. No último encontro pelas eliminatórias da Copa de 2010 (um empate em 0 a 0 na semana passada no Rio), nenhum registro das costumeiras brigas de torcedores. "A seleção está tão ruim que até a gente estava torcendo pela Bolívia", brinca o amazonense Mauro Marino.

Mas os estrangeiros percebem muito bem a rivalidade interna da Bolívia, principalmente as cenas de racismo dos "cambas" (pessoas de Santa Cruz) contra os "collas" (como são conhecidos os originários do Altiplano). "Eles provocam o tempo inteiro. Na faculdade, não há xingamento direto, mas você sempre ouve comentários tentando inferiorizar o estudante que vem de outros Departamentos", conta Nascimento.

Crise política muda vida de universitários brasileiros na Bolívia.

O mato-grossense Claudinei Pereira (segundo à dir.) ao lado de colegas brasileiros e bolivianos do curso de medicina; crise na Bolívia altera cotidiano de estudantes brasileiros em Santa Cruz de la Sierra e leva cada vez mais jovens a se regularizarem no consulado.


 
Por:  Alexandre Costa Pereira    |      Imprimir