Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 14-03-2009

UM PASSEIO
Pai e filho caminham pela areia �mida da praia...
UM PASSEIO
Ilustra��o: Pauli (Paulo Araujo)

Pai e filho caminham pela areia �mida da praia. O grand�o, calado, n�o por ang�stia ou tristeza, somente uma vontade de n�o falar, de apenas seguir observando o c�u nublado, o mar azul pr�ximo ao horizonte e esverdeado na zona de arrebenta��o. O pequeno, com toda a curiosidade pr�pria dos cinco anos, experimenta as primeiras ondas de peito aberto, sob os olhos atentos do adulto.

Seguem, cada um � sua maneira. O pai, com passos curtos, pensados, o olhar perdido. J� o filho, correndo "praqui" e "pracol�", abaixando-se, levantando-se, catando coisas do ch�o, atirando objetos na �gua, perguntando o que � isso, o que � aquilo, o porqu� disso, o porqu� daquilo.

- Ent�o, isso aqui � alga, papai? Tem certeza? Parece bicho. Outro dia voce me mostrou outra coisa e disse que era alga tamb�m, s� que n�o era assim, parecia uma folha...

- Existem v�rios tipos de algas...

O menino espanta-se ao ver uma infinidade de peixes mortos, espalhados pela areia. Por essas bandas a pescaria de arrast�o ainda � um h�bito, um mau h�bito. Peixes mi�dos e filhotes trazidos pela rede e abandonados na areia pelos pescadores.

- Esses peixes est�o podres. Se voce ficar a� vai pegar o cheiro deles...

- Por que os peixes ficam fedendo assim?

- Porque est�o mortos.

- Todo bicho que morre fede?

- Todos, gente tamb�m. Por isso todo morto tem de ser enterrado.

Continuam o passeio. O pequeno no mesmo ritmo, zanzando pra todo lado, vez em quando pegando uma onda, descobrindo pequenos mist�rios para perguntar ao pai. Param diante de um grande bloqueio de pedras dispostas ao longo da praia. Do lado esquerdo o barranco, logo acima, a estrada de terra. Justamente onde termina a rua e come�a a estrada de terra � que acontecera o desabamento. O mar avan�ara aos poucos, sem pressa, mas com uma voracidade estupenda, desdenhando as v�rias tentativas para conter a sua marcha resoluta. A estrada fora interditada naquele trecho e o pequeno fluxo de autom�veis desviado para outra estrada de terra bem mais distante da praia. Contemplam o trabalho da natureza. O pai lembra-se dos momentos que passou de carro junto com o filho neste mesmo trecho. Outros tempos aqueles, quando vinham s� de visita e mal o cheiro de fuma�a da cidade grande se dissipava, j� estavam de volta. A �gua baixa que se infiltrava lentamente por sob as pedras fora o pren�ncio de uma morte anunciada.

- Uma estrela do mar! Ser� que est� viva?

- Acho que sim. Olha embaixo dela, no meio de cada uma das suas pontas tem um risco que vai at� o centro do corpo. De dentro de cada um desses riscos saem esses pelinhos. Olha aqui, eles s�o os pezinhos que fazem ela andar. Vou colocar nossa estrela na pedra e voce presta aten��o que ela vai andar.

- Cad�? Eu n�o estou vendo nada. Ser� que ela morreu?

- N�o, ela anda muito devagarzinho, voce tem de ficar olhando e esperando, esperando e olhando...

- Vamos levar ela pra mam�e?

- Voce aguenta carregar?

- S� um pouquinho.

Tomam o caminho de volta. O pai na mesma toada e o filho agora com mais dificuldade, tentando se equilibrar na areia molhada enquanto segura a estrela com as duas m�os. Acaba cansando, entrega a estrela ao pai e volta a andar em ziguezague pela areia.

- Olha, pai, um caranguejo!

Correndo de lado, quase impercept�vel, ele tenta fugir dos olhos curiosos do menino. Quatro patinhas pra c�, outras quatro pra l�, dois pontinhos negros que ora sobem, ora descem e na frente as duas presas semitransparentes prontas para o ataque. � todo susto. O pai inicia um bal� esquisito com o animalzinho, tentando evitar sua fuga. Corre pra l�, corre pra c�, estica um bra�o, uma perna. O bichinho para subitamente, patinhas laterais escorando o corpinho, olhinhos esticados no ponto mais alto, garras abertas.

- � um filhotinho! Filhotinho de siri � menor do que o pai dele?

- Claro, voce n�o � menor do que eu?

- Caranguejo nasce de ovo ou da barriga da m�e dele que nem a gente?

O pai vacila. Como pode o sujeito estudar tanto, viajar tanto, conhecer tantas coisas e pessoas diferentes, desenvolver tantos projetos, conversar sobre tantas coisas, dar respostas a tantas perguntas, receber respostas de tantas d�vidas, viver uma vida inteira cheia de aventuras, aprender outras l�nguas, vivenciar tantos costumes diferentes, se envolver com tantas pessoas, amar algumas, se desentender com outras, corrigir erros, cometer outros erros, lutar por coisas grandes, chorar por coisas pequenas, ajudar e ser ajudado, conquistar vit�rias, lamentar derrotas, viver tanto e t�o intensamente e n�o ter uma resposta segura para uma pergunta t�o simples!

- Do ovo...

- Que nem cobra e tartaruga?

- �, que nem cobra e tartaruga...

- O siri, papai, est� fugindo! A onda vai pegar ele, ele vai pra dentro do mar...

- N�o tem problema, ele consegue viver tanto na terra quanto na �gua. Acho que ele � anf�bio. Sabe o que � um anf�bio?

- (...)

- � o animal que vive tanto na �gua como fora dela. Sapo � anf�bio, sabia?

- Ent�o, meu tio tamb�m �!

- Seu tio? Por qu�?

- Porque ele nada muito bem. Ele chega na praia e vem correndo por cima das ondas, depois mergulha e vai sair l� na frente, l� no fund�o... E nem morre! Vamos levar a estrela pra mam�e?

- Melhor n�o. � preciso comprar uma seringa e formol na farm�cia. Depois a gente tem de injetar o formol e deixar a estrela secando no sol o dia inteiro. D� muito trabalho.

- Esse neg�cio que p�e nela com a seringa mata ela?

- Mata, e serve pra conservar a estrela do jeitinho que ela era.

- Acho melhor n�o matar ela n�o.

- Ent�o ela tem de voltar pro mar. Fica aqui enquanto eu vou l� na frente, depois das ondas e jogo a estrela bem longe.

- Ta legal, mas n�o vai muito no fundo.

O menino observa a entrada do pai no mar agitado. Solta um gritinho a cada onda vencida e chama por ele. V� a �gua subindo e o corpo afundando D� um suspiro. V� o bra�o levantado segurando a estrela, projetando-se para tr�s e lan�ando-a para frente. Assiste o voo da estrela, das m�os do pai at� um ponto qualquer naquele mund�o de �gua. Mal ela desaparece seus olhinhos ansiosos buscam o pai. Sente um al�vio ao avist�-lo voltando calmamente. A �ltima onda bate com for�a e empurra-o em dire��o ao filho. O homem fica surpreso ao ver a agita��o da crian�a, seu cora��ozinho batendo acelerado, os bra�os agarrando-o com for�a e os olhos �midos de quem chorou um choro abafado.

- O que foi, meu filho?

- Eu fiquei com medo...

- De qu�?

- O senhor n�o � anf�bio que nem o meu tio...

O Paulista passa o bra�o em torno do filho, beija-o e caminha com ele pela areia em dire��o � estrada de terra. Andam agora no mesmo passo, o menino mais aliviado, segurando firme sua m�o. As nuvens escuras v�o sendo levadas pelo vento. Junto com elas, os pensamentos sombrios do Paulista. Apenas uma pergunta continua solta no espa�o: caranguejo nasce mesmo do ovo?

Trecho do livro "O mergulho do Paulista", de Paulo Araujo.

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Fonte: O Autor
 
Por:  Paulo Araujo    |      Imprimir