Categoria Cinema  Noticia Atualizada em 17-08-2013

Com história de amor entre mulheres, "Flores Raras" ensina a arte de perder
Décadas de 50 e 60, Rio de Janeiro, duas mulheres e uma história que virou o amor de uma vida inteira. Mais do que isso. Uma história que transcendeu o tema raso da homossexualidade e segue ensinando sobre a arte de perder.
Com história de amor entre mulheres,
Foto: www.jb.com.br

Em Flores Raras, novo projeto do cineasta Bruno Barreto, a perda é o principal tema. E engana-se quem pensa que o filme é arrastado e confuso, como o assunto pode parecer em primeira instância.

A obra, baseada no livro Flores Raras e Banalíssimas, de Carmem L. de Oliveira, tem um quê de As Horas (2001), longa de Stephen Daldry, que conta a história da escritora Virgina Woolf, só que com uma emoção digna de Entre Dois Amores (1985), obra de Sydney Pollack, estrelado pelos brilhantes Robert Redford e Meryl Streep. "Não queria fazer um filme sobre uma artista torturada. Queria uma história de amor que você se emocionasse", contou Bruno Barreto, em entrevista. Pois bem, ele conseguiu.

É impossível não se sentir tocado com a história de amor entre Elizabeth Bishop, poeta norte-americana vencedora do Prêmio Pulitzer em 1956, e Lota de Macedo Soares, "arquiteta" brasileira que idealizou e supervisionou a construção do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro. Desde o princípio do filme, Barreto tem uma preocupação muito legítima em introduzir o tema da perda sutilmente, mostrando uma Bishop bastante confusa e cansada, tentando trabalhar em um poema que viria a se chamar Uma Arte. Ela decide viajar, mudar de ares, como se buscasse conseguir "bagagem" para conseguir terminar aqueles versos incompletos, que tratam de um tema que ela conhece tão bem.

Para os que não sabem, Elizabeth Bishop perdeu o pai ainda na infância, sua mãe morreu após ser internada em uma clínica psiquiátrica. Não tinha irmãos. Era sozinha. Miranda Otto, atriz australiana conhecida por seu papel em O Senhor dos Anéis, apresenta uma poetisa muito real, torturada, alcóolatra e confusa, sim, mas não dentro de um clichê costumeiro. Apesar de toda a carga emocional que Otto consegue passar, a identificação do público, em um primeiro momento, não é com ela.

Assim que chega ao País, Bishop se mostra arredia e até um pouco mal-educada, não sabe lidar com os brasileiros, fala pouco e se mostra mais amorosa aos gatos do que aos humanos. No início, a Lota de Macedo Soares de Glória Pires rouba a cena e em inglês - para a surpresa de muitos, já que 95% do filme é falado no idioma. Lota é divertida e até então apaixonada por Mary, vivida por Tracy Middendorf. Glória apresenta uma arquiteta com trejeitos bastante masculinos e que definitivamente não sabe perder nunca.

Apesar da simpatia instantânea por Lota, o filme tem uma grande virada, assim que as duas começam de fato a se relacionar. Elizabeth Bishop se torna mais humana, cria poemas belíssimos, ganha o Prêmio Pulitzer. Lota se torna mais arredia, brava e aquela simpatia inicial começa a esmaecer. Se entrega à construção do Parque do Flamengo e deixa sua musa inspiradora para lá. A poeta por sua vez renasce, mas se entrega à bebida, o que dá origem a diálogos riquíssimos. Aliás, as brigas entre as duas, são recheadas de boas frases, como: "sou comprometida com pessimismo. Assim, jamais me decepciono".

Provavelmente, Lota perde totalmente a empatia inicial em meio a uma discussão em frente a uma das igrejas de Ouro Preto (MG), quando Bishop declara que está voltando para Nova York. Ela chama a companheira de bêbada e solta a célebre frase: "como você se atreve? Depois de tudo o que eu fiz por você!". Ali, percebemos que, desde o início, Bishop era o lado forte, enquanto Lota se desesperava diante da perda. A inversão de papeis faz pensar e se mostra muito apropriada.

Além de atuações primorosas e um elenco integrado e afinado, Flores Raras chama a atenção pela tecnologia empregada para reconstruir com maestria o Rio de Janeiro do anos 50 e 60. As paisagens são perfeitas. A trilha sonora do filme passa quase desapercebida, diante de tantos acontecimentos, o que causa absoluta estranheza, por se tratar de um período muito rico na música brasileira: a explosão da Bossa Nova.

Enquanto a música fica um pouco para lá, a política é parte importantíssima do longa. Como Lota de Macedo era muito amiga de Carlos Lacerda, governador do estado da Guanabara, Barreto faz questão de mostrar a opinião dela sobre o Golpe Militar. Lota não era apenas a favor, comemorou ao lado de Lacerda e ainda levou Bishop, que atônita, faz um discurso criticando o povo brasileiro, que enquanto "governantes tiram a sua liberdade, jogam futebol na praia", sem qualquer preocupação com o futuro.

Flores Raras é um filme que apesar de dramático e cheio de tristezas, não traz um sentimento amargurado e doloroso. Tudo é muito sutil, mas sem tirar o peso que um tema como a perda tem. Talvez, porque Barreto tenha compreendido bem o poema de Elizabeth Bishop que diz: "A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério".

Fonte: www.jb.com.br
 
Por:  Maratimba.com    |      Imprimir