Categoria Geral  Noticia Atualizada em 11-08-2014

Colômbia vira cidade da Alemanha em livro didático comprado
Obra custou R$ 481 mil aos cofres públicos, sem licitação, e está cheia de erros. MP investiga
Colômbia vira cidade da Alemanha em livro didático comprado
Foto: g1.globo.com

NITERÓI - Colômbia é uma das principais cidades da Alemanha. Achou absurdo? Que tal então dizer que a Alemanha tetracampeã chegou à Copa do Brasil rumo ao tri? Pois esses e outros erros foram escritos em seis mil exemplares de um livro distribuído em plena Copa para alunos da rede municipal, do 6º ao 9º ano do ensino fundamental, incluindo estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA). A publicação, dividida em dois volumes e intitulada "A copa do mundo no Brasil", foi comprada pelo município da editora Intertexto, com dispensa de licitação, por R$ 481 mil. Cada par da obra custou aos cofres públicos R$ 80. O mesmo kit foi adquirido pelo GLOBO-Niterói, em 18 de julho, por R$ 50. Como não havia troco, e a Copa já tinha acabado, a editora deixou por R$ 40. O contrato está sendo investigado pelo Ministério Público estadual.

De acordo com o Sindicato dos Profissionais de Educação (Sepe-Niterói), os livros só chegaram às escolas entre a primeira e a segunda semana de julho, quando os jogos já estavam nas quartas de final e semifinal. O sindicato também questiona a utilidade do material. Segundo o Sepe, os livros foram distribuídos aos alunos apenas como um "brinde". Não houver qualquer orientação para o uso didático do kit em sala de aula.

Além da troca do nome da cidade alemã de Colônia por Colômbia, outros erros de português, de informação, históricos e conceituais foram apontados nos livros pelo professor da Faculdade de Educação e bacharel em História da UFF Nicholas Davies, a pedido do GLOBO-Niterói.

Mesmo um fato de conhecimento geral, como o número de títulos mundiais conquistados pela seleção alemã, aparece equivocado. Na página 214, a obra ignora o fato de que o caneco do tricampeonato já fora erguido pelos alemães na Copa de 90. Davies também aponta a reprodução de mapas na publicação em desacordo com as normas do Ministério da Educação.

— Todos os mapas identificam os países por nomes em inglês ou no idioma local. Assim, Uruguai é chamado de Uruguay, Costa do Marfim de Côte d’Ivoire, Inglaterra de United Kingdom (Reino Unido) e Alemanha de Deutschland. Ou seja, os nomes não estão em português. Só com base neste critério, o livro seria rejeitado pelo MEC — afirma o educador.

Nem o Brasil escapou dos enganos da publicação, como aponta Davies. Na página 18, os autores relatam que o café era nossa principal atividade agrícola desde o Brasil-Colônia.

— O café só se estabeleceu como principal atividade agrícola do país a partir das primeiras décadas do século XIX. A principal atividade no Brasil-Colônia era a cana de açúcar.

DADOS EXTRAÍDOS DA WIKIPEDIA

O especialista aponta ainda erros como o da página 90, na qual o livro usa o termo "mulçumana" — o certo é "muçulmana". Além disso, na página 53, a obra afirma que o príncipe Juan Carlos foi "nomeado" rei.

— Reis não são nomeados, mas sim coroados — ensina o professor.

Além dos erros de português, o livro também peca na geografia:

— Na página 25, está escrito que a Croácia localiza-se "a" sudeste da Europa. O certo é "no sudeste", pois a Croácia fica dentro da Europa, não fora dela, ideia transmitida pela preposição "a".

O professor também questiona as referências bibliográficas listadas nos livros. A obra cita 390 páginas da internet consultadas. Destas, 64 são da enciclopédia virtual Wikipedia. Outras 17 são do portal de vídeos YouTube.

Davies também afirma que publicações citadas na bibliografia não têm qualquer relação com o conteúdo.

— Será que o objetivo com isso foi exibir erudição? A lista cita, por exemplo Theodor Adorno ("Teoria estética"), Marilena Chauí ("Convite à filosofia"), Augusto Comte ("Os pensadores"), Antonio Gramsci ("A concepção dialética da História"). Nada extraído dessas obras é usado em parte alguma dos livros — afirma.

AUTORES PARENTES DE EX-PREFEITO DO PT

Entre os autores da obra estão a mulher do ex-prefeito petista Godofredo Pinto (2002-2008), Maria Regino D’Angelo Pinto, e o filho do político Bruno D’Angelo da Silva Pinto. Bruno também é creditado no livro como um dos responsáveis pelo projeto gráfico. A editora Intertexto é conhecida do ex-secretário de Educação Waldeck Carneiro (PT), que deixou o cargo em abril para se candidatar a deputado estadual. A empresa editou três livros escritos por Waldeck, entre eles "Movimentos instituintes em educação: políticas e práticas" e a coleção "Educação e vida nacional". Ele também foi secretário de Educação na gestão de Godofredo. O ex-prefeito tem feito campanha pela eleição de Waldeck. Assim como o pai político, Bruno Pinto também está acostumado a frequentar o Poder Legislativo municipal: já foi assessor do vereador petista André Diniz. Maria Regina D’Angelo também já foi chefe de gabinete de Diniz.


O ex-secretário Waldeck defendeu a publicação da editora Intertexto:

— Eu já não estava no cargo quando a decisão da compra foi tomada, mas a negociação foi iniciada na minha gestão. Li a obra e avalio o conteúdo como qualificado. Até comprei os livros para os meus filhos.

Além de Bruno e Maria Regina, assinam o livro como autores Angela Borba, Carmem Lúcia Pessanha, Gilberto Oliveira da Silva Júnior, Heloísa Helena Meireles dos Santos e Sílvia Pedreira.

A editora Intertexto não funciona no endereço registrado na Receita Federal, na Estrada Caetano Monteiro 2.835. O GLOBO-Niterói visitou o local, que fica no condomínio de casas Village Pendotiba. Lá, os repórteres foram informados de que a empresa teria se mudado. A equipe de reportagem entrou então em contato por telefone com uma das proprietárias da empresa, a bibliotecária Eliana da Silva e Souza. Ela explicou que o novo endereço funciona em seu apartamento, na Rua Mariz e Barros, em Icaraí, onde foi adquirido um kit com os livros.

LIVROS DIDÁTICOS MAIS BARATOS

Numa comparação com preços de livros didáticos com tiragens semelhantes, o kit "A copa do mundo no Brasil" custa caro — pelo menos para o poder público. O governo federal, por exemplo, comprou, por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), 4.141 unidades de "Biologia das células", da Editora Moderna, ao custo de R$ 10,16 cada. No site da editora, o livro é vendido por R$ 170. Outro exemplar foi o "Enlaces 2 — Español para jóvenes brasileños", da editoria Macmillan do Brasil. Foram adquiridos 6.319 unidades por R$ 8,36 cada. Na página da livraria Saraiva a obra custa R$ 81,20.

Presidente da FME, José Henrique Antunes disse que o livro foi comprado para aumentar o "repertório dos alunos". Ele afirmou desconhecer os erros e avaliou o preço como justo:

— Os professores foram estimulados a trabalhar o livro com as crianças, aproveitando a ocasião da Copa. Quanto ao preço da obra, a quantidade não era muito grande, a ponto de haver uma redução de custo.

A FME informa ainda que não compete a ela fiscalizar o endereço da sede da empresa contratada. Argumenta ainda que não foi necessária licitação porque a editora detém carta de exclusividade como única produtora para edição, distribuição e comercialização desse tipo de material.

AUTORES ATRIBUEM ERROS A FALHAS DE REVISíO DA OBRA

Uma das autoras da obra, Maria Regina D’Angelo Pinto, admitiu que o livro contém erros e classificou o problema como possível falha de revisão.

— Eu li o livro e percebi alguns erros, assim como os outros autores. Eles acontecem. Não é isso que anula o valor da obra — disse Maria Regina.

Coordenadora da publicação, Carmen Lúcia Pessanha prometeu se reunir com os autores do livro para discutir os problemas apontados:

— Não notei os erros. A equipe é especializada, escolhida por mim, e todos são professores, exceto Bruno D’Angelo. Mas, como homem brasileiro tem conhecimento de futebol.

Carmen afirma ainda que a participação de Maria Regina, mulher do ex-prefeito Godofredo Pinto, foi uma escolha pessoal:

— Sou amiga dela desde a adolescência. Ela não pode pagar por ser mulher do ex-prefeito.

Filho de Godofredo, Bruno D’Angelo não quis comentar os erros:

— Escrevi a parte do esporte. É um assunto que gosto de estudar. Não fiz o texto sozinho, houve uma revisão.

Doutora em Educação pela UFF, Ângela Borba defendeu a obra:

— Não tenho como me pronunciar muito sobre os erros porque os autores se dividiram por temas. Não concordo que o conteúdo seja irrelevante.

Professora de história, Sílvia Pedreira disse que o livro pode ter erros de digitação e falhas de revisão, mas não acha que o conteúdo seja descartável.

Proprietária da editora Intertexto, Eliana da Silva e Souza se disse surpresa com os erros. Sobre a compra dos livros, ela acredita que foi oportuna, devido à importância da Copa . A respeito do valor pago pelo município (R$ 80), Eliana afirma que foi até um desconto, já que o preço inicial era de R$ 110. Segundo ela, após o período da Copa, o preço caiu para R$ 50.

Revisora dos livros, Leila Pereira afirma que é professora de português e que tem experiência na área:

— É normal passar alguns erros de revisão. Acontece com todo mundo.

Godofredo Pinto não foi encontrado.





Fonte: g1.globo.com
 
Por:  Gabrielly Rebolo    |      Imprimir