Categoria Opinião  Noticia Atualizada em 22-12-2014

O Natal da maioria silenciosa

O Natal da maioria silenciosa

Eu fui � guerra. Estava l�, nas trincheiras, buscando a morte dos inimigos - que eles morressem pelo pa�s deles antes que eu morresse pelo meu, afinal. N�o havia tempo para pensar ou sentir - matar ou morrer era o nosso credo, avan�ar n�o importa a que custo nossa divisa.

� minha frente, entre as nossas trincheiras e as do inimigo, o sangue dos corpos daqueles que tombaram na refrega misturava-se � lama, compondo um cen�rio dantesco embalado pelas gargalhadas de Satan�s. Diante de tamanho horror, ficava a exclamar, com Castro Alves, "Deus, � Deus, onde est�s que n�o respondes? Em que mundo, em que estrela tu te escondes"?

E eis que caiu a noite do dia 24 de dezembro. Um a um, morteiros, canh�es e fuzis foram silenciando diante do grito de nossas consci�ncias. Ao final, s� restou aquele sil�ncio opressor que faz estremecer mesmo as almas mais embrutecidas. Foi quando ouvi um can��o de Natal, ecoando l� das trincheiras inimigas.

O quadro era absurdo - as notas musicais sobrevoavam os corpos insepultos de tantos soldados, pousando a seguir em nossos cora��es angustiados. Alguns de n�s responderam, come�ando a cantar em coro. As vozes eram tristes, solu�antes e abafadas, mas de uma beleza angelical - ouso arremedar que nunca ter� havido perante o Criador concerto mais sublime.

Um dos nossos, cora��o t�o marejado quanto os olhos, levanta-se ent�o da trincheira. Parte de peito aberto rumo ao inimigo levando n�o o a�o que fere ou o chumbo que perfura, mas o cora��o que cativa - vai l�, abra��-lo. Outros o seguem - eu inclusive.

Descobrimos, naquele lugar desolado pelo mal, um sacerdote. Foi ali, entre cad�veres e canh�es, que rezou-se talvez a mais linda missa que um religioso jamais ambicionaria celebrar. E l� estava eu, ao lado dos inimigos que matei e dos que ainda viviam, buscando pela escurid�o deste mundo a luz da reden��o.

Findas as ora��es, nossas ra��es de campanha compuseram, como que por milagre, a mais deliciosa ceia de Natal jamais servida. N�o havia, � certo, o tilintar de cristais - mas quem precisa deles diante do som infinitamente mais agrad�vel das batidas de centenas de cora��es entrando em harmonia?

Ap�s uma noite verdadeiramente feliz, decidimos sepultar nossos mortos, lado a lado. Com a voz embargada dos penitentes encomendamos juntos ao Criador as almas daqueles irm�os cujas vidas hav�amos subtra�do na v�spera. Foi ali, de m�os dadas com meus inimigos, que finalmente me compreendi ef�mero diante da eternidade e insignificante sob o infinito.

Fomos todos - franceses, ingleses e alem�es - punidos por estes momentos de grandeza e miseric�rdia. Afinal, aos senhores da guerra s� agrada a paz dos cemit�rios. Transferidos para campos de batalha ainda mais violentos, fomos perecendo um a um - mas com a alma leve de uma crian�a.

A guerra, claro, chegou a um fim - mas aquele Natal de 1914, visto pela �tica de um desconhecido soldado, permanece entre n�s, superando a Hist�ria e convocando nossas mentes a uma reflex�o. Onde a liberdade, quando alguns poucos decidem que nossos destinos negar�o a l�gica mais elementar? Das guerras � corrup��o, dos desmandos � sanha da burocracia, l� est� Incitatus nos pisoteando a todos, ditando as medidas de nossa humanidade.

Dizem alguns que h� no mundo uma tal "maioria silenciosa de pessoas de bem". Isso n�o basta - ela h� que ser igualmente do bem, h� que denunciar o mal, pois que a palha da manjedoura de Bel�m abrigou a coragem, jamais a omiss�o.

Fonte: Reda��o Maratimba.com
 
Por:  Pedro Valls Feu Rosa    |      Imprimir