Categoria Geral  Noticia Atualizada em 08-01-2015

Nelson Rodrigues, o profeta tricolor, e sua menção a Maomé
No exato instante em que eu estava terminando de escrever sobre as metáforas e o humor irreverente de Nelson Rodrigues que mencionou, há 50 anos, um “momento Maomé” que um dia lhe havia ocorrido, soube do abominável atentado à revista “Charlie Hebdo” no q
Nelson Rodrigues, o profeta tricolor, e sua menção a Maomé
Foto: g1.globo.com

Pensei muito se deveria abordar ou não este tema hoje, mas decidi afirmativamente em homenagem aos feridos e mortos nesse tenebroso ato que afeta todos os que querem viver com humor e liberdade. Nelson Rodrigues viveu de pé e não se intimidava com as críticas e com os que, muitas vezes, quiseram calar sua voz.

Sou fã de Nelson Rodrigues. O nome do meu blog já mostra isto. Rodrigues escreveu no dia 2 de dezembro de 1964 uma crônica em sua coluna – "À sombra das chuteiras imortais" – descrevendo um sentimento humano, um sentimento profético. O jornal "O Globo", de 2 de dezembro passado, reproduziu na sua coluna "Há 50 anos" o extrato do genial escritor pernambucano radicado no Rio de Janeiro. Fiquei tão fascinada que procurei a edição do jornal daquele dia para lê-la por inteiro.
E ele, extraordinário como era na sua conhecida coluna diária, discorreu sobre o seu "momento Maomé", quando previu que a derrota para o Botafogo levaria o fluminense, seu time do coração, à vitória no campeonato carioca. Sua crônica fala do futebol como um fato social total, e com isso, se refere à vida. Aqui vai o extrato publicado há poucos dias no jornal "O Globo":

"Amigos, quando o Botafogo enfiou o seu ‘goal’ solitário no Fluminense, estava a meu lado um rubro-negro doente. E ele virou cambalhotas. Confesso que, naquele momento, também eu comecei a ruir. Muitas vezes, no espaço que vai de uma esquina a outra esquina, o sujeito passa da depressão mais hedionda para a euforia mais deslavada. Entrei na redação pisando como um césar. É que baixara em mim uma vidência apavorante. Não há aquele que não tenha o seu momento de Maomé. E tudo pode falhar, menos esse êxtase profético. Eu, modesto cronista, tive, sim, a certeza fatal: o Fluminense começara a ser campeão na derrota para o Botafogo."

Nelson Rodrigues é escritor fabuloso e cronista de palavras impossíveis. Passar da "depressão mais hedionda para a euforia mais deslavada" é uma frase lapidar. Quem não conheceu esses momentos? Já a profecia, bom, acho que Nelson Rodrigues exagera. Raros são aqueles que conseguem ter esse "momento de Maomé".

As crônicas de Nelson Rodrigues sobre futebol são de uma beleza extraordinária. Talvez se possa dizer que ele e seu irmão Mario Filho, que dá o nome ao estádio do Maracanã, foram responsáveis por traduzir e incentivar o sentimento dos brasileiros em relação ao esporte que nasceu na Inglaterra e no Brasil se transformou em paixão alucinada.

Esse pequeno extrato de uma de suas colunas é uma amostra muito pequena da grandiosidade do extraordinário escritor de romances inesquecíveis como "O casamento", de peças teatrais memoráveis como "Vestido de noiva" e de crônicas diárias imperdíveis. Muito de sua obra foi reproduzida em filmes também imperdíveis como "O casamento", de Arnaldo Jabor, "A dama do lotação", de Neville de Almeida, e "Engraçadinha", de Haroldo Marinho Barbosa. Sua obra fala de um Rio de Janeiro pouco revelado, o Rio da Zona Norte, a descrição dos dramas mais íntimos vividos em família, sem pejo, sem perdão, com estonteante sinceridade.

Quem não gostaria de ter essa verve, essa descoberta de metáforas abissais. Mas isso é para poucos, e Nelson Rodrigues foi um desses escritores únicos que deixou sua marca por suas tiradas de gênio. Talvez tenha sido o primeiro escritor a falar do desejo sexual das mulheres, não se referindo ao sexo oposto apenas como objeto do desejo masculino. E só por isso já seria grande porque escreveu num tempo de muita repressão sexual e moral.

Nelson Rodrigues, se vivo estivesse, certamente abominaria o atentado a "Charlie Hebdo", porque lutou pela liberdade de se manifestar usando expressões e humor cortantes como os cartunistas que perderam a vida em Paris.

Fonte: g1.globo.com
 
Por:  Ingrid Leitte    |      Imprimir