Categoria Tragédia  Noticia Atualizada em 08-02-2008

Conflitos transformam Quênia em 'paraíso perdido"
No país há três meses, imunologista deixou laboratório para atender feridos nos protestos
Conflitos transformam Quênia em 'paraíso perdido"
Foto: Yasuyoshi Chiba/AFP

O paraíso perdido. Este é o sentimento de Lúcia Fernandes Aleixo quando se fala no Quênia. Essa médica mineira de 45 anos serviu duas vezes no país como funcionária da Organização Médicos Sem Fronteiras (MSF). Da primeira passagem, em julho de 2007, ficaram apenas boas lembranças" novos amigos, clima tropical, povo amigável e a vida em um país aparentemente calmo e próspero. Já a segunda, iniciada em novembro do ano passado" pouco antes da eclosão das revoltas no país" vem sendo bem mais complicada.

"Temos que viver um dia de cada vez", disse a Doutora em Imunologia pela Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, em entrevista ao G1, por telefone, direto de Nairóbi. Ela respondia à pergunta sobre como é estar em meio aos conflitos que desde o final de dezembro já deixaram cerca de 700 mortos no país.

Coordenadora de um laboratório de tratamento de pacientes contaminados com o vírus HIV, Lúcia repentinamente se viu atuando como anestesista para dar conta do enorme fluxo de pessoas com ferimentos graves. "São casos muito sérios. Os piores são os que chegam atingidos por tiros ou pelas pangas", relata ela, referindo-se às enormes facas usadas por muitos manifestantes durante os protestos.

Embora a maioria dos conflitos esteja concentrada na região oeste do Quênia, a capital Nairóbi também tem sua cota de tensão. A polícia está presente de modo ostensivo nas ruas, há problemas de abastecimento e o conseqüente aumento no custo de vida, que atinge em especial a população mais pobre.

O contingente do MSF" cerca de 150 pessoas, entre médicos e pessoal administrativo" teve sua escolta reforçada e passa por restrições de movimento, especialmente quanto a viagens para fora da capital.

Segundo ela, um fator que dá mais tranqüilidade em um momento tão delicado é o fato de que o MSF é reconhecido como um grupo humanitário. "Não fazemos distinções entre etnias ou correntes políticas. Atendemos a todos da mesma forma. A população vê isso, o que evita que nos tornemos alvos".

A insegurança na capital obrigou o MSF a fechar temporariamente algumas de suas clínicas, especialmente na região pobre de Kibera. Embora algumas já tenham sido reabertas, cerca de 400 pacientes em tratamento contra o HIV não voltaram mais aos locais. "É gente que perdeu sua casa e tudo o que tinham", lamenta-se Lúcia. Essas pessoas são motivo de grande preocupação para a organização, pois precisam de medicamentos anti-retrovirais para sobreviver.

De qualquer modo, a situação ainda não chega perto da vivida pela médica durante sua estada na Somália. "Lá o problema era crônico. Há quase 20 anos o país não tem governo, nem escolas, nem hospitais. Tudo o que eles têm é a religião. Era complicado até andar na rua", recorda-se.

Com a melhora nas condições de atendimento médico no país" novas equipes internacionais de socorro chegam quase todos os dias" Lúcia torce agora pelo fim da violência político-étnica para prolongar seu período na África, programado para terminar em maio. "Gosto muito do Quênia. Adoraria que as coisas se acalmassem para poder ficar mais tempo por aqui."

No centro da tempestade
Quem não vê a menor possibilidade de retornar ao Quênia por enquanto é a geógrafa queniana "Makena"" nome fictício, a pedido dela -, de 26 anos de idade, que há três mora na cidade de Bonn, na Alemanha, onde trabalha no Ministério do Meio Ambiente germânico.

Nascida na cidade de Kisumu, no oeste do país" reduto oposicionista da etnia luo, fortemente ligada ao candidato presidencial derrotado nas eleições de dezembro de 2006, Raila Odinga" Makena vê agora sua família no olho do furacão das manifestações contra o governo. "Eles estão num lugar muito perigoso. Soubemos que as tropas do governo têm ordens de atirar para matar quando entram na cidade", revela.

Antes do início do conflito, Makena telefonava para o Quênia duas ou três vezes por mês. Hoje, conversa com os parentes" pai, dois irmãos e duas irmãs, além do noivo" diariamente. E mesmo assim se sente preocupada quando assiste ao noticiário sobre o país.

Ela relata que esteve de férias na casa do pai em novembro, pouco antes das eleições que deram início aos protestos. E que já na época era possível sentir a tensão no ar. "As pessoas estavam revoltadas porque o governo não havia distribuído as terras, que estão todas nas mãos dos quicuios"" a etnia mais numerosa do país. "Depois disso, a eleição teve seus resultados fraudados de modo explícito. Fomos traídos pelo governo. Onde está a democracia?", questiona. Segundo ela, essa foi a fagulha que pôs fogo no barril de pólvora social que estava em gestação no país.

Agora, Makena passa seus dias entre o trabalho, os telefonemas para a família e a revolta com a situação. "Não tenho esperanças de uma saída pacífica. O governo é corrupto e manda os soldados atirarem nas pessoas", desabafa. "Somente voltarei para o Quênia se houver uma mudança no governo. Senão vou dar um jeito de trazer meu noivo para cá".

Conflitos transformam Quênia em 'paraíso perdido", diz médica brasileira. No país há três meses, imunologista deixou laboratório para atender feridos nos protestos.
Queniana que vive na Alemanha diz que tropas do governo 'atiram para matar'.

Fonte:

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Por:  Alexandre Costa Pereira    |      Imprimir